Livro

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Novidades

Olá, meu povo! Saí da toca para compartilhar com vocês duas novidades:

 

umbigo das coisas

A primeira é que foi lançado no dia 11 de dezembro o portal Umbigo das Coisas, de meus amigos Rogério Bettoni e Bernardo Malamut. O Umbigo das Coisas, na verdade, é mais que um mero portal. Antes, é uma verdadeira Revista Eletrônica que abrange áreas como filosofia, psicanálise, literatura, artes visuais (cinema, vídeo, fotografia etc.), música, além de traduções.

Com muito prazer aceitei o convite para fazer parte do Conselho Editorial desse projeto maravilhoso. É uma honra atuar ao lado de gente com o calibre de Cíntia Bertolino, Cristiane Barreto, Leila Bortolus, Miguel Antunes, Raquel Beolchi, Renata Mendonça, além dos já citados Rogério e Bernardo e de uma lista igualmente impressionante de Colaboradores.

Mas, as surpresas não acabam aí! Além de fazer parte do Conselho, vez ou outra, estarei por lá como autor e colaborador.

Então fica aqui o convite: ‘bora’ conhecer o Umbigo das Coisas! E, se ficarem inspirados a colaborar, enviem-nos seus escritos para avaliação. Espero que apreciem!

 

lindas gerais

A segunda novidade é que, recentemente, fui entrevistado pela amiga de outras eras Rosângela Oliveira, editora do blog Lindas Gerais. E no último dia 03 a entrevista foi publicada com o título Filosofia e Ciência da Religião em destaque…

O blog Lindas Gerais, publicado desde a cidade de São João del-Rei, nas Minhas Gerais, é um espaço dedicado à cultura, à arte e ao artesanato. E tem, sistematicamente, valorizado fatos e personagens da ‘terrinha’, celebrando nossa mineiridade sem, contudo, se perder em infrutífero bairrismo.

Foi, para mim, uma honra ter essa boa conversa de cozinha com Rosângela e ver, agora, o resultado publicado.

E, lembrem-se: para acesso completo ao portal Umbigo das Coisas e à entrevista Filosofia e Ciência da Religião em destaque..., é só clicar nos links ao longo dessa postagem, ou nas imagens acima.

Abraços!

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Comunicado

architecture1

Caros amigos e leitores:

Com um susto dei-me conta que já estamos nos ‘finalmentes’ de 2011. O ‘Scientia Religionis’ está no ar há quatro meses, com publicações semanais, e vocês me têm dado uma excelente resposta. Muito obrigado!

Com a proximidade do final do ano, encerramento de atividades acadêmicas, prazos apertados e outros compromissos surgidos de última hora, resolvi que as publicações ficarão suspensas até meados de Janeiro de 2012. Uma espécie de “recesso de final de ano”. Não serão férias, ainda, por que estarei cuidando de assuntos relacionados à tese de doutoramento (ano que vem será a defesa) e a um concurso para professor no qual sou candidato (torçam por mim!).

Para o próximo ano teremos novidades aqui no blog, aguardem!

Aproveito, contudo, esse momento para desejar-lhes um excelente final de ano!  Espero revê-los por aqui em 2012.

Um grande abraço:

Augusto Araujo

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ainda sobre o Agnosticismo

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Um texto de Thomas Henry Huxley *

É importante notar que o princípio do naturalismo científico da segunda metade do século XIX, que coroou o movimento intelectual da Renascença e foi primeiro formulado por Descartes, não leva à negação da existência de qualquer sobrenatureza, mas simplesmente à negação da validade da evidência aduzida em favor desta ou daquela forma existente de sobrenaturalismo.

Examinando o problema a partir do mais rígido ponto de vista  científico, a admissão de que, em meio à miríade de mundos espalhados pelo espaço infinito, não possa haver inteligência maior que a do homem, da mesma forma que a dele é maior do que a de uma barata; de que não há um ser dotado de poderes de influenciar o curso da natureza tão superiores aos do homem quanto são os do homem em relação a uma lesma, parece-me tão sem fundamento quanto impertinente. Sem ultrapassar a analogia com o que é conhecido, é fácil povoar o cosmo com entidades em escala ascendente, até atingirmos algo praticamente indistinguível da onipotência, onipresença e onisciência. Se nossa inteligência pode, em alguns assuntos, reproduzir indubitavelmente o passado de milhares de anos atrás e antecipar o futuro em milhares de anos adiante, está evidentemente dentro dos  limites do possível que alguma inteligência superior, mesmo que de ordem semelhante, seja capaz de retratar todo o passado e a totalidade do futuro; se o Universo é preenchido por um meio tal que uma agulha magnética na Terra responda a uma comoção no Sol, um agente onipresente é também concebível. Se nosso conhecimento insignificante nos permite alguma influência sobre os eventos, a onisciência prática pode conferir poder indefinivelmente maior. Por fim, se a evidência de que algo pode existir fosse equivalente à prova de que ele existe, a analogia bem poderia justificar a construção de uma teologia e demonologia naturalistas não menos maravilhosas do que a corrente sobrenatural, bem como a povoar Marte e Júpiter com formas de vida sem paralelo com as presentes na biologia terrestre. Até que a vida humana seja mais longa e que os deveres da imprensa atual sejam menos prementes, não creio que homens sábios ocupar-se-ão com a história natural joviana ou marciana; e eles provavelmente concordarão com o veredicto de “não comprovado" com respeito à teologia naturalista, resguardando-se na confissão agnóstica que, para mim, surge como a única posição possível para pessoas que se recusam a dizer que sabem aquilo que estão bem cientes de que não sabem. Em relação aos interesses da moralidade, inclino-me a pensar que, se a humanidade pudesse ser levada a comportar-se conforme esse último princípio em todas as relações da vida, uma reforma sem precedentes seria efetivada, uma aproximação do milênio que nenhuma religião sobrenaturalista jamais logrou alcançar ou parece capaz de algum dia atingir.

* HUXLEY, T. H. O Natural e o Sobrenatural. In: ______. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 107-109.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Prefácio ‘quase-esquecido’ da primeira edição de “Le Ciel et L’Enfer selon le Spiritisme” (1865)

 

C&I

Introdução

Em 1865, quando Allan Kardec (1804-1869) publicou o livro Le Ciel et l’Enfer ou la Justice Divine selon le Spiritisme (“O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o Espiritismo”), o fez preceder de um Préface no qual, dentre outras coisas, propõe uma revisão de algumas de suas obras e apresenta o novo livro como continuidade de seu labor de desenvolvimento da doutrina espírita.[1]

Curiosamente, no entanto, este Préface parece ter sido esquecido pelos tradutores brasileiros da obra kardeciana. Esquecimento que só não foi total, visto que o público brasileiro dispunha de duas traduções parciais deste texto. Ambas, presentes nas traduções de Salvador Gentile e de Evandro Noleto Bezerra à Revue Spirite. No número de setembro de 1865, Kardec publicou um excerto do Prefácio na seção “Notas Bibliográficas”.[2]

Recentemente (2009), no entanto, foi publicada pela Federação Espírita Brasileira (FEB), uma nova tradução de O Céu e o Inferno (feita por Evandro Noleto Bezerra), a qual reintegra o Prefácio a seu lugar de direito. Em nota o tradutor explica que:

Este “Prefácio” não fazia parte da 4ª edição francesa de O Céu e o Inferno – edição definitiva – que serviu de base para esta tradução. Apareceu, na 1ª edição, publicada em agosto de 1865. Ao inseri-lo aqui, tivemos em vista resgatar para as novas gerações estes escritos quase desconhecidos do Codificador do Espiritismo e oferecê-los aos estudiosos da Doutrina Espírita.[3]

Desconheço se Kardec teria retirado o Préface apenas nesta última edição por ele revista (4ª edição de 1869), ou se já o fizera nas edições anteriores. A nota acima não oferece qualquer indicação a respeito. Igualmente desconheço os motivos pelos quais Kardec teria feito isso. No entanto, parece-me claro, os tradutores brasileiros se “esqueceram” do Préface de 1865 por que basearam suas traduções na edição de 1869.

Outro fato curioso envolvendo a obra em questão é que esta 4ª edição, assumida como definitiva, só veio a lume a 1º de Julho de 1869. Três meses, portanto, após a morte de Allan Kardec. Florentino Barrera, em seu livro Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec [4], afirma que esta edição estabelece o texto definitivo da obra uma vez que teria sido revista pelo próprio Kardec. Informação corroborada pela Revue Spirite (Jul/1969) que a anunciou, seguida da observação:

A parte doutrinária desta nova edição, inteiramente revista e corrigida por Allan Kardec, sofreu importantes modificações. Alguns capítulos foram inteiramente refundidos e consideravelmente aumentados.[5]

Instigado pelo que acreditava fosse uma lacuna histórica, e, portanto, sem conhecimento do trabalho de Evandro Noleto Bezerra, empreendi minha própria tradução do texto. Empreitada assumida com o apoio do amigo Vital Cruvinel (um dos editores do blog Decodificando O Livro dos Espíritos e de quem é a revisão da tradução). Nossa ideia original era a de enviar a tradução para publicação em algum periódico interessado. No entanto, diante da realidade desta outra iniciativa, desistimos temporariamente da ideia.

Como tradutor, meu empenho foi de evitar tanto o literalismo simplista, que ignora as distâncias linguísticas e temporais entre o texto original e o esforço de tradução; quanto uma abordagem mais livre que pudesse desvirtuar o sentido original que o autor quis impingir a sua obra, ou que pudesse abrir espaço para interpretações dúbias de sua mensagem.

Depois de concluída a tradução e sua revisão, e tão logo tomamos conhecimento do trabalho realizado por Evandro Noleto Bezerra, tivemos o cuidado de cotejar as traduções em busca de possíveis equívocos de compreensão de nossa parte. E, de minha parte, fiquei satisfeito em constatar a proximidade bem como a distância pelas opções linguísticas e estilísticas assumidas. O que poderá ser facilmente percebido pelo leitor num breve exercício comparativo. Visando possibilitar tal comparação, bem como contribuir com o avanço dos estudos da obra kardeciana no Brasil, decidi, com a anuência de Vital Cruvinel, tornar público este modesto empreendimento conjunto.

A tradução:

Prefácio da Primeira Edição de Le Ciel et l’Enfer (1865).[6]

O título desta obra indica claramente o seu objeto. Aqui reunimos todos os elementos próprios para esclarecer o homem acerca de seu destino. Como em nossos escritos anteriores sobre a doutrina espírita, não se parte aqui de um sistema preconcebido ou de uma concepção pessoal, a qual não gozaria de qualquer autoridade. Tudo foi deduzido a partir da observação e da concordância dos fatos.

O Livro dos Espíritos contém as bases fundamentais do espiritismo; é a pedra angular do edifício. Todos os princípios da doutrina nele se encontram colocados, até aqueles que devem constituir o seu coroamento. Mas, era necessário dar-lhes desenvolvimentos, deduzir-lhes todas as consequências e todas as aplicações, à medida que se desenvolviam por meio do ensino complementar dos Espíritos, e de novas observações. Foi o que fizemos no Livro dos Médiuns e no Evangelho segundo o espiritismo a partir de pontos de vista específicos. É o que fazemos nesta obra, segundo outra perspectiva, e é o que faremos sucessivamente naquelas obras que ainda publicaremos e que virão a seu tempo.

Ideias novas não frutificam senão quando a terra está preparada para recebê-las. Ora, entende-se que a terra está preparada não pelo surgimento de algumas inteligências precoces, as quais dariam apenas frutos isolados, mas por certo conjunto na predisposição geral, a fim de que não somente a ideia produza frutos mais abundantes, mas que, encontrando numerosos pontos de apoio, encontre igualmente menos oposição, e seja mais forte para resistir a seus antagonistas. O Evangelho segundo o espiritismo representou um avanço; o Céu e o Inferno é um avanço ainda maior cujo alcance será facilmente compreendido, posto que toca o essencial de certas questões, contudo, não deveria ter aparecido prematuramente.

Considerando-se a época do advento do espiritismo, reconhece-se sem dúvida alguma que este apareceu no tempo oportuno: nem cedo, nem tarde. Muito cedo, ele teria abortado, por que as simpatias não seriam muito numerosas. Teria sucumbido sob os golpes de seus adversários. Muito tarde, teria perdido a ocasião favorável de se produzir; as ideias poderiam ter tomado outro curso, do qual teria sido difícil desviá-las. Era, pois, necessário deixar às velhas ideias o tempo de se gastar e de provar sua insuficiência, antes de apresentar as novas.

As ideias prematuras abortam porque não se está maduro para compreendê-las, e a necessidade de uma mudança de posição não se fez ainda sentir. Hoje é evidente para todo o mundo que um imenso movimento se manifesta na opinião geral; uma reação formidável se opera no sentido progressivo contra o espírito estacionário ou retrógrado da rotina. Os satisfeitos de ontem são os impacientes de amanhã. A humanidade se encontra em trabalho de parto; há no ar qualquer coisa, uma força irresistível que a arrasta adiante; ela é como um jovem saído da adolescência que entrevê novos horizontes sem os definir, e lança fora as fraldas da infância. Deseja-se algo melhor, alimentos mais sólidos para a razão. Contudo, este melhor não está ainda bem definido, procura-se-o. Todo o mundo nisto trabalha, desde o crente até o incrédulo; desde o trabalhador até o sábio. O universo é um vasto canteiro de obras no qual uns demolem, outros reconstroem. Cada um talha uma pedra para o novo edifício do qual apenas o grande Arquiteto possui o plano definitivo, e do qual não se compreenderá a economia senão quando suas formas começarem a se desenhar sobre a face do solo. Tal é o momento que a soberana sabedoria escolheu para o advento do espiritismo.

Os Espíritos que presidem ao grande movimento regenerador agem, pois, com maior sabedoria e previdência do que podem fazê-lo os homens, posto que eles apreendem a marcha geral dos acontecimentos, enquanto nós não contemplamos senão o círculo limitado de nosso horizonte. Os tempos da renovação chegaram, segundo os decretos divinos. Era preciso que em meio às velhas ruínas do velho edifício, o homem, a fim de não se desencorajar, entrevisse os alicerces da nova ordem de coisas; era preciso que o marinheiro pudesse perceber a estrela polar que o deve guiar até o porto.

A sabedoria dos Espíritos que se mostrou no advento do espiritismo, revelado quase instantaneamente por toda a terra, à época mais propícia, não é menos evidente na ordem e na gradação lógicas das revelações complementares sucessivas. Não depende de ninguém constranger sua vontade a este respeito, pois eles não medem seus ensinamentos pelo grau de impaciência dos homens. Não basta que digamos: “Queremos ter tal coisa”, para que ela nos seja dada; e é ainda menos conveniente que digamos a Deus: “Julgamos que chegou o momento para que nos dê tal coisa; nos julgamos avançados o suficiente para recebê-la”; isto seria como lhe dizer: “Sabemos melhor que você o que é conveniente fazer”. Aos impacientes, os Espíritos respondem: “Comecem primeiramente por bem saber, bem compreender, e, sobretudo, por bem praticar aquilo que vocês sabem, a fim de que Deus os julgue dignos de aprender mais; depois, quando chegar o momento, saberemos agir e escolheremos nossos instrumentos”.

A primeira parte desta obra, intitulada Doutrina, contém o exame comparado das diversas crenças sobre o céu e o inferno, os anjos e os demônios, as penas e as recompensas futuras. O dogma das penas eternas aqui é encarado de uma maneira especial, e refutado por meio de argumentos tirados das leis da natureza, e que demonstram, não apenas seu lado ilógico, já assinalado mil vezes, mas sua impossibilidade material. Naturalmente, com as penas eternas, caem todas as consequências que se acreditou delas poder tirar.

A segunda parte contém numerosos exemplos que sustentam a teoria, ou antes, que serviram para estabelecer a teoria. Eles haurem sua autoridade da diversidade de tempos e lugares nos quais foram obtidos, posto que se emanassem de fonte única, seria possível encará-los como o produto de uma mesma influência. Ademais, sua autoridade advém da concordância com a qual são obtidos todos os dias, onde quer que se ocupe das manifestações espíritas do ponto de vista sério e filosófico. Tais exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito, pois não há centro espírita que não possa deles fornecer um notável contingente. Para evitar repetições fastidiosas, fizemos uma escolha dos mais instrutivos. Cada um desses exemplos é um estudo, no qual todas as palavras têm sua importância para todo aquele que as meditar com atenção, pois cada ponto lança uma luz sobre a situação da alma após a morte, e a passagem da vida corporal à vida espiritual até este momento tão obscura e temida. É o guia do viajante antes de entrar em um novo país. A vida do além-túmulo se apresenta sob todos os seus aspectos, como um vasto panorama; cada um aí encontrará novos motivos de esperança e consolação, bem como novas bases para reafirmar sua fé no porvir e na justiça de Deus.

Nesses exemplos, tomados em sua maioria de fatos contemporâneos, ocultamos os nomes próprios todas as vezes que julgamos útil, por motivos de conveniência fáceis de compreender. Aqueles a quem tais exemplos possam interessar os reconhecerão facilmente; para o público, nomes mais ou menos conhecidos, e algumas vezes muito obscuros, não acrescentariam nada às instruções que deles se pode retirar.

As mesmas razões que nos fizeram calar os nomes dos médiuns no Evangelho segundo o espiritismo levaram a nos abster de nomeá-los na presente obra, escrita mais para o futuro que para o presente. Tais médiuns não estão nada interessados em atribuir-se o mérito por uma coisa à qual seu espírito não teve qualquer participação. A mediunidade, aliás, não se encontra submetida a tal ou tal indivíduo; é uma faculdade fugidia, subordinada à vontade dos Espíritos que querem se comunicar, a qual se possui hoje e que pode desaparecer amanhã, e que não é aplicável a todos os Espíritos sem distinção, e, por isso mesmo, não constitui um mérito pessoal como o seria um talento adquirido mediante o trabalho e os esforços da inteligência. Os médiuns sinceros, aqueles que compreendem a gravidade de sua missão, consideram-se como instrumentos que a vontade de Deus pode quebrar quando quiser, caso não ajam segundo seus interesses; eles ficam felizes com uma faculdade que lhes permite se tornarem úteis, mas não extraem daí qualquer vaidade. De resto, nos conformamos sobre este ponto aos conselhos de nossos guias espirituais.

A providência quis que a nova revelação não fosse privilégio de ninguém, mas que tivesse seus órgãos por toda a terra, em todas as famílias, em casa dos grandes como dos pequenos, segundo esta palavra da qual os médiuns de nossos dias são a realização: “Nos últimos tempos, diz o Senhor, derramarei meu Espírito sobre toda carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões e vossos velhos sonharão. Nesses dias derramarei meu Espírito sobre meus servos e minhas servas, e eles profetizarão” (Atos, cap. II, v. 17,18).

Mas está dito também: “Haverá falsos Cristos e falsos profetas” (Ver o Evangelho segundo o espiritismo, cap. XXI).

Ora, esses últimos tempos chegaram; não é o fim do mundo material, como se tem acreditado, mas o fim do mundo moral, ou seja, a era da regeneração.


[1] Ao contrário do que aconteceu com as demais publicações de Allan Kardec, a obra O Céu e o Inferno parece não ter sido um sucesso de vendas. Se comparado com a opus magna de Kardec – Le Livre des Esprits – a qual apenas entre 1860 (ano da publicação da 2ª e definitiva edição) e 1863 somou 9 edições (10 se contarmos a edição de 1857); ou mesmo com o sucesso de La Génèse, les miracles et le predictions selon le spiritisme (A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo), que obteve três edições no mesmo ano de sua publicação (1868), com a diferença de apenas um mês entre elas; o penúltimo dos grandes tratados kardecianos teve desempenho bastante modesto. Segundo Florentino Barrera (2003, p. 71-78), a segunda edição de O Céu e o Inferno só veio a lume em 1868, três anos após seu lançamento, portanto. Ainda segundo Barrera, a 3ª edição data de 1868-1869; e 4ª edição 1869.

[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita, Set/1865. Notas Bibliográficas. Rio de Janeiro: FEB, 2006. p. 377-382. (Trad. Evandro Noleto Bezerra).

[3] BEZERRA, Evandro Noleto. Nota do Tradutor. In: KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Ou a justiça divina segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p.11.

[4] BARRERA, Florentino. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. São Paulo: USE/Madras, 2003.

[5] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Jul/1869. À Venda em 1º de Junho de 1869. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 309-310. A rigor o artigo deve ter sido escrito por A. DESLIENS que, após a morte de Allan Kardec, tornou-se o secretário-gerente da Revista Espírita, cargo, na prática, equivalente ao de redator. Contudo, sigo aqui, ao fazer essa referência bibliográfica, o padrão indicado pelos dados fornecidos pela editora na ficha catalográfica do volume correspondente ao número XII da coleção da Revista Espírita.

[6] Referência: KARDEC, Allan. Préface. In: ______. Le Ciel et l’Enfer ou la Justice Divine selon le Spiritisme. Paris : Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias de Araujo. Revisão: Vital Cruvinel.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Religião e Memória na obra de Allan Kardec

Algumas palavras: nas últimas semanas tenho re-publicado textos que cobrem minha pesquisa sobre Allan Kardec (1804-1869) e que foram ou publicados ou apresentados em Congressos ao longo do ano de 2010. O principal objetivo dessa re-publicação é  oferecer aos leitores do blog a possibilidade de verificarem o modo prático como tenho encarado o ofício do cientista da religião; além, é claro, de fazer novamente a divulgação desses textos. Tudo que um autor deseja é ser amplamente lido e debatido. E, mesmo reconhecendo as muitas limitações desses textos ora re-apresentados e sabendo, que no estágio atual de minha pesquisa, muitas daquelas opiniões neles defendidas precisem sofrer uma ampla revisão, creio que representam um ponto importante de minha reflexão recente.

 

Allan Kardec - Desmoulin

Resumo:

A análise crítica dos escritos de Kardec tem-nos mostrado que, com certeza, este autor desejava que a doutrina e o movimento por ele iniciados tivessem um alcance universal. No entanto, ao contrário desta aspiração, não se pode deixar de notar que não só Kardec funda uma nova religião, como a vincula de maneira irrevogável à tradição e à memória cristãs. Isso fica claro não apenas com a publicação, em 1864, de L’Évangile selon le Spiritisme. Mas, desde a Conclusion de Le Livre des Esprits (1860), quando vincula a nova doutrina ao conjunto dos dogmas católico-romanos, e lhe atribui o caráter de uma chave hermenêutica para a recondução destes dogmas a seu verdadeiro significado. O objetivo deste trabalho é analisar os elementos desta vinculação, discutindo como aquilo que se constitui como o projeto pessoal de Allan Kardec para o espiritismo se converte, ainda durante em sua vida,num movimento de recuperação da memória da religião cristã, principalmente católico-romana, dos “desvios doutrinários”a que teria sido submetida. Um processo que, a meu ver,culminará na cristalização de uma nova identidade para a doutrina dos espíritos, a de“cristianismo redivivo”.

Palavras-chave:

Espiritismo, Allan Kardec, Religião, Memória.

[Essa comunicação foi originalmente apresentada no III Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP, 2010, Recife, e publicada integralmente nos Anais Eletrônicos. Recife : Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2010. p. 1240-1252. Para acesso ao texto completo clique aqui].

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Espiritismo segundo Allan Kardec: um ‘médium’ para a tradição cristã

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Introdução:

O Espiritismo é uma religião. Ainda que pese a opinião de Allan Kardec (1804-1869), seu fundador, de que tal afirmação poderia “[...] dar uma ideia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer em particular do caráter e do objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas” [1] – o núcleo por ele fundado para o estudo e a pesquisa dos fenômenos e da doutrina espíritas –, parece-me impossível negar essa realidade. Não apenas pelo desenvolvimento histórico da nova doutrina e do movimento em torno dela articulado, ao implantar-se em terras brasileiras ainda no século XIX [2], mas de maneira marcante na própria obra kardeciana. Apesar de afirmar o caráter universal do Espiritismo e sua abertura a todo culto ou confissão religiosa [3], será frente à tradição cristã – suas fontes, seus dogmas, suas práticas – que Kardec e o Espiritismo nascente terão de se posicionar. E será a esta mesma tradição que a nova doutrina recorrerá em busca de legitimação para sua pretensão de se configurar como “traço de união” entre ciência e religião. [4]

Este trabalho dá continuidade a artigo anterior intitulado Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec [5], no qual proponho uma reflexão sobre o “[...] processo de formação identitária do Espiritismo – doutrina e movimento – a partir de seu discurso fundador presente na obra de Allan Kardec” [6], e trabalho com a relação entre “Espiritismo” e as três instâncias a que Kardec recorre a fim de legitimar seu discurso: ciência, filosofia e religião. O objetivo ali era demonstrar como, nesta interação, a identidade do Espiritismo se consolida ao estabelecer fronteiras, numa relação de relativa superioridade e de superação, frente a essas três instâncias, sem, no entanto, abrir mão do uso de sua linguagem e de suas fontes. Neste contexto, o conceito de Espiritismo se apresentaria como um conceito híbrido, o qual indicaria o caráter mediador da nova doutrina e do movimento articulado em seu entorno.[7]

No presente trabalho, pretendo retomar alguns elementos dessa reflexão prévia, aprofundando-os, ao analisar o modo como a identidade religiosa do Espiritismo (doutrina e movimento), é forjada na obra kardeciana em continuidade com a tradição cristã – principalmente na sua versão Católico-Romana – a partir da apropriação e releitura de suas fontes e de alguns elementos de sua dogmática. Para tanto, me aterei, sobretudo, a seus três últimos livros publicados – O Evangelho segundo o Espiritismo (1864); O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina segundo o Espiritismo (1865); e, A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868) – sem, contudo, excluir qualquer referência a suas demais publicações. Tais obras foram priorizadas porque será nelas que o autor se debruçará com maior acuidade sobre as questões das relações entre Espiritismo e Cristianismo. Nessa abordagem, a obra de Kardec é encarada como um discurso que postula, ao lado de outras coisas, garantir à doutrina espírita seu droit de cité frente aos sistemas e instituições de representação que não o próprio Espiritismo. Nesse caso específico, a religião cristã.

[Este trabalho foi originalmente apresentado no 23º Congresso Internacional da SOTER, 2010, Belo Horizonte, e publicado integralmente em: Anais do 23º Congresso Internacional da SOTER - Religiões e Paz Mundial - Grupos Temáticos. São Paulo : SOTER - Paulinas, 2010. p. 329-341. - ISBN: 978-85-356-2691-9. Para a leitura completa clique aqui].


[1] KARDEC, Allan. Refutação de um artigo do “Univers”. In: ______. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano Segundo – 1859. Rio de Janeiro: FEB, 2007, p. 196.

[2] No meio acadêmico, entre os estudiosos do Espiritismo no Brasil, parece haver a tendência em contrapor o modelo brasileiro e o francês com base na distinção entre religiosidade e laicidade (Cf.: STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: EDUSP, 2003). Nos últimos anos têm ganhado expressão no seio do Movimento Espírita Brasileiro grupos ligados à Confederação Espírita Pan-americana (CEPA) que defendem o Espiritismo como ciência e filosofia de caráter laico (não-religioso).

[3] Cf.: KARDEC, Refutação de um artigo do “Univers”, op.cit., p. 205-206.

[4] Cf.: KARDEC, Allan. Aliança da Ciência e da Religião. In: ______. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2008. p. 60-61.

[5] Cf.: ARAUJO, Augusto. Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec. Horizonte, v. 8 n. 16, jan./mar. 2010.(Em Edição).

[6] ARAUJO, op. cit.

[7] A necessária limitação deste artigo não nos permitiu uma discussão mais ampla do termo hibridismo. Seria necessária uma extensa revisão da literatura referente ao tema, o que extrapola nossa possibilidade, no momento. Se, contudo, a origem do termo, na genética do século XIX, remete em sentido amplo a tudo que é composto por elementos diferentes, heteróclitos, disparatados; aqui ele assume o significado de uma tentativa de abrigar sob um mesmo conceito – o conceito de espiritismo na obra de Allan Kardec – três outros conceitos que aparentemente se colocam como antagônicos e irreconciliáveis, sem, no entanto, propor uma síntese que os nivele em importância ou significação. Conforme se verá, o conceito espiritismo em Kardec se apresenta como um conceito híbrido porque retira de suas relações com as representações correntes em seu tempo de ciência, filosofia e religião; e do uso e apropriação de suas linguagens específicas, uma fonte de autoridade e de suposta articulação desses saberes a partir de uma posição mais abrangente e superior.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Identidade e Fronteiras do Espiritismo na obra de Allan Kardec

 

Este artigo é uma reflexão sobre o processo de formação identitária do espiritismo a partir da análise de seu discurso fundador presente na obra de Allan Kardec (1804-1869). Para cumprir este objetivo, trabalhar-se-á com a hipótese de que tal processo acontece a partir de uma peculiar interação do espiritismo com três instâncias de conhecimento: a ciência, a filosofia e a religião. Através da análise do exemplo específico de como o espiritismo interpreta elementos da tradição cristã-católica, dando-lhes um significado renovado, pretende-se demonstrar que neste jogo, o conceito de espiritismo se configura como um conceito híbrido, de caráter polissêmico, o qual aponta para o fato de que a nova doutrina e o movimento articulado em seu entorno nascem sob o signo da mediação. Tais reflexões indicariam que, ao fazerem referência à obra de Kardec como núcleo imaginário de identificação doutrinária, grupos das diversas tendências dentro do espiritismo contemporâneo podem encontrar relativas zonas de conforto para seu progressivo desenvolvimento.

Palavras-chave: Espiritismo; Ciência; Filosofia; Religião; Fronteiras.

Leia o artigo completo na página da Revista Horizonte. Clique aqui.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Allan Kardec: Autor ou Codificador?

 

Allan_Kardec

 

No texto ‘Allan Kardec: autor da doutrina dos espíritos?’, originalmente publicado no Jornal Opinião (Ano XVI, Nº 176, Julho 2010), defendo a tese de que Kardec é o intérprete de fontes de informação diversas, muitas vezes fragmentárias, que se fossem simplesmente colocadas lado a lado, não formariam um todo coerente. Não se questiona se tais fontes seriam, como ele alega, fontes espirituais. Mas, com base na seguinte afirmação do próprio Kardec: “C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857” [1]; e por mim traduzida: “Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857”; concluo pela tese da autoria, muito embora, em diversas outras ocasiões Kardec atribua a composição da Doutrina aos Espíritos e não a si mesmo. Porque, “penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor”.

Desta conclusão, um natural questionamento pode surgir para aqueles que, minimamente, conhecem a obra kardeciana: se concordarmos que Kardec é o autor da “doutrina dos Espíritos”, isso não significaria que ele mentiu atribuindo aos Espíritos um trabalho que foi apenas dele? Provavelmente todos os leitores de sua obra conhecemos as diversas passagens nas quais nosso autor afirma categoricamente que a doutrina espírita não é obra de um homem, mas do conjunto do ensino concordante dos Espíritos. Ou quando, em A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, Kardec faz uma distinção entre o que é “segundo o Espiritismo” – o que equivale a dizer: segundo o ensino dos Espíritos – e suas opiniões pessoais apresentadas apenas como hipóteses. Ou ainda, as passagens nas quais descreve sua metodologia de pesquisa – em A Gênese e em A minha primeira iniciação no Espiritismo (no volume das Obras Póstumas) como isenta de pré-juízos ou “teorias preconcebidas”. Como então, insistir nessa tese de que Kardec é o autor?! E, nesse caso, essa “mentira” não causaria uma diminuição no grau de confiabilidade que os espíritas podem ter na obra kardeciana e no próprio Kardec?

Honestamente, eu penso que não: afirmar, contradizendo Kardec, que ele é o autor da doutrina que atribui aos Espíritos, não é o mesmo que afirmar que Kardec mentiu. Em primeiro lugar porque a mentira pressuporia que Kardec, deliberadamente, tenta enganar seus leitores. E não penso que isso tenha acontecido. Tampouco defendo que Kardec tenha declinado da autoria em favor dos Espíritos por “humildade”. Ao contrário, para mim o que marca essa decisão é uma forte consciência da importância do método como fator de fortalecimento da ideia de uma “ciência espírita”. De fato, Kardec declara:

Apliquei a esta nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão.[2]

Tal consciência metodológica, fazendo, eco à pretensão iluminista da suspensão absoluta de todos os pressupostos e à autonomia radical da razão – que a tudo e todos pode avaliar e fazer conter em seus limites –  conferiria ao Espiritismo sua cientificidade. Kardec, filho de seu tempo, “[...] formado na tradição cultural do século XVIII [...]”, como bem recorda José Herculano Pires, “[…] compreendeu claramente que o problema de seu tempo repousava na questão do método [...]” [3]. Dessa maneira, a agenda iluminista, que o positivismo do século XIX assume como sua, e que tem como pressuposto que qualquer conhecimento só se torna válido quando baseado na ausência completa de pressupostos e expressão de uma racionalidade autônoma, tornou-se naturalmente a agenda do próprio Kardec.

Tal entendimento do método, contudo, é problemático não apenas porque não retrata o que acontece em todo fenômeno hermenêutico, mas porque, se fosse possível de ser alcançada seria indesejável. Neste ponto, apenas faço eco às palavras de Marco Antonio Casanova que afirma em sua apresentação ao pensamento de Hans-Georg Gadamer (1900-2002):

A suspensão de nossos pressupostos significaria propriamente uma dissolução de toda orientação prévia e de toda expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. Do mesmo modo, não há como imaginar a interpretação como um processo que se constrói paulatinamente do zero e vai ascendendo a um campo de sentido determinado por meio de cada um de seus passos. Se já não lêssemos um texto, por exemplo, guiados por uma expectativa de sentido específica, jamais poderíamos reunir as diversas palavras do texto com vistas a esse sentido, de tal modo que a leitura permaneceria presa a uma pluralidade de frases desconexas.[4]

Assim, se as coisas tivessem se passado com Kardec tal como ele descreve; se, no processo de construção da doutrina espírita, ele não possuísse qualquer ideia prévia do que poderia encontrar nos fenômenos e nas comunicações com que trabalhava, todo seu trabalho seria infrutífero. De fato, o problema não se encontra em possuir ou não pressupostos ao se interpretar textos, mas na expectativa ingênua de que tais pressupostos sejam sempre confirmados.

Por isso, ao apresentar como exemplo do método empírico aplicado à construção da doutrina, o princípio doutrinário segundo o qual há Espíritos comunicantes que acreditam não estarem mortos [5], Kardec não está indicando que trabalhou absolutamente sem pressupostos. Ao contrário, podemos encontrá-los em abundância: o pressuposto da existência de Espíritos; o da possibilidade de comunicação entre eles e os homens (encarnados); o de que é possível conhecer o que se dá após a morte através destas comunicações; o de que o método científico (positivo) pode ser aplicado às “coisas metafísicas”, etc. E, mesmo que se argumente (e se acredite) que tais pressupostos foram estabelecidos “cientificamente” por Kardec; ainda sim são pressupostos sem os quais afirmar que no mundo dos Espíritos há Espíritos que acreditam ainda estarem vivos, não faria qualquer sentido.

Mesmo a existência e comunicabilidade dos Espíritos – princípio básico da doutrina espírita, estabelecido, segundo Kardec, a partir da análise das manifestações físicas e pela demonstração de sua causa inteligente – não foram encaradas por Kardec a partir de uma ausência completa de pressupostos. Leia-se nos primeiros parágrafos do ensaio autobiográfico A minha primeira iniciação no Espiritismo, publicado no volume das Obras Póstumas, a descrição de como Kardec recebe a notícia das mesas girantes. O “ceticismo” inicial, como ele gosta de descrever, não representa ausência de pressupostos. Antes, representa um preconceito bem caracterizado, calcado numa compreensão dos fenômenos à luz da teoria do magnetismo animal.

Igualmente, ao se defender da acusação de que ao ensinarem a teoria da reencarnação os Espíritos estariam tão somente atendendo à sua expectativa de sentido no que toca ao problema da preexistência da alma e sua destinação, Kardec explica:

Quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, estava tão distante do nosso pensamento que, sobre os antecedentes da alma havíamos construído um sistema completamente diferente, partilhado, aliás, por muitas pessoas. Sob esse aspecto, portanto, a Doutrina dos Espíritos nos surpreendeu profundamente; diremos mais: contrariou-nos, porquanto derrubou as nossas próprias ideias. Como se pode ver, estava longe de refletí-las. Mas isso não é tudo: nós não cedemos ao primeiro choque; combatemos, defendemos nossa opinião, levantamos objeções e só nos rendemos à evidência quando percebemos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as dificuldades levantadas pela questão.[6]

O que tais exemplos tornam patente? Que, ao contrário do que afirma, Kardec possuía sim, pressupostos e expectativas de sentido no momento da formulação da doutrina. Como disse anteriormente, defendo a tese de que Kardec é o intérprete de fontes de informação diversas, muitas vezes fragmentárias, que se fossem simplesmente colocadas lado a lado, não formariam um todo coerente. E, como afirma Casanova:

Nenhuma interpretação se movimenta para além de um espaço previamente aberto pela compreensão. Esse espaço não é um espaço restrito qualquer, mas aponta muito mais para uma totalidade que determina de maneira integral todas as possibilidades interpretativas subsequentes. A compreensão realiza, em outras palavras, incessantemente o projeto de um horizonte globalizante, que funciona como campo de sentido prévio. No interior desse campo, uma série de coisas se mostram como possíveis, outras como impossíveis, enquanto outras não chegam nem mesmo a vir à tona segundo a chave do possível e do impossível. A interpretação atualiza, então, aquilo que a compreensão abre como possível e retém por meio disso a articulação originária com o horizonte compreensivo. Nessa atualização, porém, a interpretação conta ainda com um conjunto de estruturas prévias (preconceitos no sentido mais próprio do termo) que promovem a performance interpretativa mesma. Nesse movimento, contudo, o intérprete não se vê condenado a seus preconceitos. O que caracteriza o acontecimento hermenêutico é muito mais uma revisão incessante da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetadas. [7]

Os exemplos demonstram, portanto, que Kardec, o intérprete, “não se vê condenado a seus preconceitos”. Ao contrário, frente ao(s) texto(s) das comunicações a ser(em) interpretado(s), realiza uma revisão – não sem antes defender seu ponto de vista peculiar – “da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetados”, numa autêntica “performance hermenêutica” que lhe assegura o epíteto de autor da “doutrina dos espíritos”.

À guisa de conclusão

Como vimos, “o que caracteriza o acontecimento hermenêutico é muito mais uma revisão incessante da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetadas”. E, a partir de exemplos retirados da obra kardeciana concluí pela posição de Kardec como intérprete do ensino dos Espíritos, e consequentemente, autor da doutrina espírita, uma vez que deste ensino fragmentário a doutrina não surge naturalmente. Num caso como este, o intérprete torna-se autor, pois, não é o mero reprodutor de suas fontes. Ao contrário, envolve-se num processo criativo a partir do qual a interpretação é ordenada segundo procedimentos de controle e auto-controle oriundos do próprio material a ser interpretado. É algo como se houvesse um “princípio popperiano” da interpretação, a partir do qual nem toda expectativa de sentido projetada pelo intérprete é possível de ser confirmada [8]. Chamo a isso “a materialidade do texto”, já que no texto-fonte encontra-se o limite “material” a partir do qual toda e qualquer interpretação possível é construída [9].

Kardec reconhece a “materialidade” de suas fontes. Em A minha iniciação no espiritismo, ao relatar o processo que deu origem à primeira edição de Le Livre des Esprits, afirma que as comunicações permitiram “provar” a existência do mundo espiritual, bem como conhecer sua constituição e seus costumes, num processo semelhante ao que poderia chamar-se de uma “etnografia do mundo dos espíritos”. Pois, segundo descrição do próprio Kardec, cada Espírito se convertera, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, em uma fonte de informação; exatamente como se chega a conhecer um país ao se interrogar seus habitantes de todas as classes e de todas as condições. Cada um informando-nos de alguma peculiaridade; mas, nenhum deles, individualmente sendo capaz de informar-nos tudo o que é preciso saber; cabendo, portanto, ao observador formar uma visão de conjunto, a partir dos documentos recolhidos por meio dos diversos testemunhos, cotejando-os, coordenando-os e os controlando uns por meio dos outros [10]. Em outras palavras: ao observador cabe eliminar possíveis divergências e contradições em meio à diversidade de relatos disponíveis. A Kardec coube este papel de tentar sanar tais discrepâncias e gerar uma concordância de fundo, mais que de forma (como ele mesmo gostava de afirmar), e retirar daí uma doutrina que se pretende filosófica (racional). Então, parece-me natural, afirmar que Kardec tenha, neste processo, se convertido no autor da doutrina.

Mas, pode-se perguntar: mesmo diante da negativa explícita, tantas vezes repetida por Kardec de que ele não é o autor da doutrina? Sim, mesmo diante de tais assertivas creio ser necessário reafirmar a tese da autoria. Já que negar tal tese seria, a meu ver, defender que a doutrina espírita tenha sido “ditada inteira” pelas fontes de informação das quais Kardec dispunha. O que contraria sua própria compreensão da dinâmica da “revelação espírita” dada a conhecer no primeiro capítulo de A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868). Neste, que é o último de seus grandes tratados doutrinários, Kardec define assim o duplo caráter da revelação espírita:

Por sua natureza a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira, porque foi providencial seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desejo premeditado do homem: porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens sobre as coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhe importa conhecerem, já que hoje estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa; por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as consequências e aplicações. Em suma, o que caracteriza a revelação espírita é o fato de ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.[11]

Assim, indo além das constantes negativas – e poderia citar aqui várias vezes em que recusa ser considerado autor da doutrina ou fundador do Espiritismo – Kardec parece desenvolver  uma crescente consciência de sua autoria em detrimento da transcendentalidade da doutrina. Por exemplo, se tomarmos a folha de rosto da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), poderemos ver que ali aparece a seguinte descrição da obra: “Écrit sous la dictée et publié par l’ordre d’Esprits Supérieurs” (Escrito sob o ditado e publicado por ordem de Espíritos Superiores). Nas edições seguintes essa descrição é substituída por: “Selon l’enseignement donné par les Esprits supérieurs à l’aide de divers médiums. Recueillis et mis en ordre par Allan Kardec” (Segundo o ensinamento dado pelos Espíritos superiores através de diversos médiuns. Recolhidos e postos em ordem por Allan Kardec). Ora, uma doutrina “ditada” por alguém difere muitíssimo de uma doutrina “segundo os ensinamentos” de alguém.

O que desejo demonstrar com este exemplo é que, entre 1857 e 1868 a compreensão de Kardec sobre o tema  se modificou. De uma doutrina “ditada”, e portanto, literalmente dos Espíritos; para uma crescente tomada de consciência do papel do “homem” em sua elaboração. Um papel fundamental já que os ensinamentos que lhe servem de fonte – dados, segundo Kardec, por Espíritos – precisam ser recolhidos e postos em ordem (comparados e fundidos; classificados e muitas vezes modificados, reparados, etc. como vimos em ‘Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?’) . Um indicativo de que, em seu estado bruto, tais ensinamentos são insuficientes – seja por sua diversidade, seja por suas ambiguidades ou divergências explícitas - para formar doutrina (um sistema coeso) de caráter filosófico (racional).

Em minha opinião, tal consciência apenas não se torna explícita declaração de autoria devido ao conflito existente entre cumprir a agenda metodológica iluminista-positivista que garantiria ao espiritismo seu caráter científico; e o risco de transformar essa doutrina em apenas um “sistema pessoal de ideias” sem qualquer autoridade.

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[1] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes.Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).

[2] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. op.cit. p. 299.

[3] PIRES, José Herculano. A Pedra e o Joio. São Paulo: Edições Cairbar, 1975. p. 18.

[4] CASANOVA, Marco Antonio. Apresentação à edição brasileira. In: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo: Martins Fontes: 2010. p. XI.

[5] KARDEC, Allan. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 30. (Tradução: Evandro Noleto Bezerra)

[6] KARDEC, Allan. Da Pluralidade das Existências Corpóreas. In: ______. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano Primeiro – 1858. Novembro. N. 11. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 446-447. (Tradução: Evandro Noleto Bezerra)

[7] CASANOVA, op.cit., p. XII. O negrito é meu.

[8] O filósofo italiano Umberto Eco fala da intentio operis (a intenção do texto, da obra) que serviria como este “princípio popperiano” para distinguir entre uma boa e uma má interpretação. (Cf.: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Ou ainda: ______. Os limites da interpretação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995).

[9] É desnecessário dizer que essa “materialidade do texto” é uma metáfora para a imposição de limites de sentido dados pelo texto a partir dos quais algumas interpretações tornam-se possíveis e outras impossíveis.

[10] Cf.: KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 350-351. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra).

[11] KARDEC, Allan. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 28-29. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O negrito é meu.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Novas reflexões de um Agnóstico

Há sempre quem se incomode quando alguém se declara agnóstico. Eu recebi algumas manifestações nesse sentido quando da publicação do ensaio 'Reflexões de um Agnóstico'. Para uns esse personagem ambíguo é alguém que não teve coragem suficiente para se declarar ateu. Para outros, um religioso moderado ou alguém indeciso, sem personalidade. O que apenas poucos percebem é que, quando uma pessoa chega a se declarar agnóstico ela não está tomada de uma dúvida atroz, implorando a outros que a convençam por um ou outro lado. De fato, uma decisão já foi tomada, e esta é: como não sei nada sobre a existência ou inexistência de deus/deuses, deixarei a questão em aberto.

Essa é, a meu ver, uma postura adequada do ponto de vista intelectual. Nada tem a ver com fé ou ausência de fé, portanto. Não é crença ou ausência dela. Tão somente, por não haver evidências conclusivas, prefere-se aguardar. Não sendo, neste caso, uma resposta algo de urgente, o agnóstico prefere aguardar.

Mas, muitos seguem não acreditando que tal posicionamento seja possível. Dias atrás, em uma conversa, comparei a situação do agnóstico àquela dos que se declaram bissexuais: ninguém se convence de sua existência, exceto ele mesmo. E fui mal compreendido. No entanto, gostaria de repetir aqui a analogia. Obviamente não estou afirmando que, assim como os agnósticos, os bissexuais tomam uma posição sobre sua sexualidade. Sabemos que no campo das sexualidades não há, a rigor, escolhas. Exceto, talvez, no sentido de manifestar publicamente sobre seu desejo. No entanto, assim como os agnósticos, bissexuais são vítimas do preconceito que os acusa de ambiguidade, de estarem passando apenas por uma fase, de mentirem, etc.

Por que isso acontece? Minha opinião é que, em geral, toda aparente ambiguidade de uns e outros assusta. Para aqueles que, ao longo de suas vidas criaram suas identidades de gênero em função de uma sexualidade homo ou heteroafetiva, parece ser difícil compreender que haja uma identidade bissexual. O mesmo ocorre, no campo das crenças, em relação ao agnóstico. Teístas e ateístas (sim, pois o ateísmo é ainda uma crença), com suas identidades definidas a partir da decisão de crer ou não em deus/deuses, em geral, não conseguem (ou não se esforçam) por compreender que alguém não se sinta pressionado a tomar uma posição, naquilo que consideram uma guerra.

Foi dessa situação que tratou o ensaio em questão. E fez isso a partir de um caso concreto. Muitos não perceberam – por exclusiva responsabilidade do autor – que o texto era uma crítica às certezas infundadas que projetam suas ‘sombras’  por todos os lados. Em nosso exemplo, um líder religioso que, atribuindo à simples declaração de ateísmo por uma personalidade pública um grau de responsabilidade desproporcional à manifestação de uma opinião pessoal, elogia e se identifica com uma declaração feita por Jung. O texto gostaria de assinalar, portanto, que maior é a responsabilidade daquele que não apenas declara seu posicionamento pessoal, mas afirma: “Eu não acredito em deus, eu sei que ele existe”. O mesmo valendo para aqueles que pensam ter razões suficientes para declarar que são ateus porque ‘sabem’ da inexistência de deus/deuses. E repito aqui a pergunta que lá se colocava: Como alguém poderia ter essa certeza?

A resposta, para mim, é simples: não se pode ter certeza. E, em sendo assim, melhor calar.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Os sinos, São Francisco e a terra natal

Todo ano é assim: vai chegando o mês de outubro, com a proximidade da Festa de São Francisco de Assis, começam a montar o parque de diversões na minha rua. Nos dias da novena, os sinos da Igreja do Convento tocam antes das missas, chamando os devotos. Até parece que estou nas ‘Minhas’ Gerais!

O meu texto 'Reflexões de um Agnóstico' alcançou alguma repercussão. E muita gente ficou acreditando que parte de minha declaração de agnosticismo poderia estar relacionada a alguma decepção ou algum problema mal resolvido frente à religião. E, outro dia, um amigo classificou-me de “teofóbico” já que, segundo ele, eu sempre reagiria de forma negativa frente a seus posicionamentos teológicos.

Nada, porém, anda mais distante da verdade. Aqueles que conhecem minha história de vida sabem que, em grande parte, ela foi marcada pela busca da compreensão da religião. Primeiro como adepto de alguns movimentos religiosos. Depois pelas vias da Filosofia e da Ciência da Religião. Como religioso acumulei alguma experiência: nascido em família católica, no interior das Minas Gerais, fui coroinha, catequista e seminarista franciscano. Desejei ser monge e eremita. Flertei com o cristianismo protestante, com o espiritismo e o budismo. Li o ‘Corão’ antes que falar de fundamentalismo islâmico fosse moda. Estudei o judaísmo. E, nos últimos anos, fui ligado ao gaudiya vaisnavismo [popularmente conhecido como movimento Hare Krsna].

Em todas essas experiências – como aliás, em todas as experiências humanas – houve aspectos positivos e aspectos negativos. Esses últimos, na maioria das vezes, ligados às instituições e às disputas internas por poder e prestígio por lideranças que frequentemente se esquecem dos ideais que deveriam exemplificar com a própria vida. De resto, meu trânsito religioso aproximou-me de pessoas maravilhosas das quais até hoje sou amigo e pelas quais nutro, muitas vezes às distância, afeto e respeito profundos. Além disso, grande parte do que sou hoje, minha sensibilidade estética, meu interesse pelo estudo e pela pesquisa, meu amor pelos livros e minha busca pela verdade, foi despertado e cultivado em minha convivência com pessoas e instituições religiosas. Desse modo, tenho mais memórias regadas a bons sentimentos que mágoas e revolta em relação ao fenômeno humano da religião.

Esses dias, muitas boas memórias têm aflorado em mim. Aqui na Campina Grande sou vizinho do Convento São Francisco de Assis, onde os franciscanos mantêm uma paróquia. E, como acontece todo ano, entre o final de Setembro e início de Outubro celebra-se a novena do padroeiro. E todos os dias, antes da missa das 19 horas, os sinos tocam por cerca de cinco minutos e despertam em mim o sagrado sob a forma de pura afeição e saudade. Não que, para mim, São Francisco seja mais santo que meu pai que lutou, junto à minha mãe, para educar a mim e meu irmão com ética e decência. Mas porque o som dos sinos e a festa franciscana reverberam em mim com o som de mil lembranças.

A infância nas Minas Gerais quando eu, coroinha aos nove ou dez anos de idade, na capela do bairro onde morávamos (e onde meus pais ainda hoje residem), me dediquei a aprender as “artes do altar” e com grande prazer tocava a velha sineta, enquanto contemplava o povo subindo a ladeira para começar a louvação. A adolescência no Convento, onde o sino nos convocava para todos os atos comunitários, da reza à refeição. E onde, todo dia 03 de Outubro, cantávamos o “trânsito de São Francisco” celebrando a vida e a morte do “pobrezinho de Assis”:

Em sua cabana, numa noite de outono, São Francisco morreu cantando… a voz que clama ao Senhor… o pobrezinho entregou sua alma: – “Que a nossa irmã, a morte, seja bem acolhida… como a gente acolhe o sono depois de um dia bem ocupado”… (Trecho da Liturgia do Trânsito de São Francisco de Assis)

É por isso que, para mim, o som dos sinos têm um encanto especial: eles recordam-me a terra natal, o coração das ‘Minhas’ Gerais. Mas, não apenas isso. Os sinos remetem-me ao que de mais essencial há em mim. Eles recolhem a minha história, minha memória e mostram-me inteiro, íntegro. Recordam-me a matéria da qual sou feito e os sonhos que ainda vivem em mim.

Sim, eu sou agnóstico, mas meu agnosticismo não nasce da mágoa ou se alimenta do ressentimento que querem me atribuir. Sou um pouco maior que isso…

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Allan Kardec: autor da doutrina dos Espíritos? *

Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857. (Allan Kardec) [1]

Quem quer que tenha tido em mãos um livro de história da filosofia deve ter notado que logo nos primeiros capítulos são apresentadas as doutrinas filosóficas dos chamados filósofos “pré-socráticos” ou “fisiólogos”. O que, talvez, poucos saibam é que não existe, a rigor, a doutrina filosófica de Tales de Mileto, ou de Heráclito de Éfeso, por exemplo. De fato, a maioria dos textos que dispomos desses pensadores é insuficiente para se afirmar a existência de tal doutrina. O que se tem são fragmentos (frases, pedaços de frases, às vezes, uma única palavra) citados ou parafraseados por outros autores e filósofos. Uma lista tão variada que inclui pensadores como o grego Aristóteles e o cristão e pai da Igreja Clemente de Alexandria; e tão extensa que cobre o período desde o século IV a.C. até o século VI d. C.

Assim, se tomarmos Heráclito como exemplo, é preciso que se diga que não há o livro "Sobre a natureza", a ele atribuído [2]. Nem sabemos ao certo se ele escreveu mesmo um livro; ou, em caso afirmativo, se era esse mesmo seu título. Aquilo que nos manuais de história da filosofia é apresentado como a doutrina de Heráclito é tão somente uma interpretação arbitrária dos fragmentos encontrados e catalogados [3]. No século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) demonstrou que, dependendo da ordem em que os fragmentos são considerados ou organizados, ou dos pressupostos filosóficos assumidos na leitura desses fragmentos, diferentes interpretações se estabelecem. E, dessa forma, as interpretações serão sempre arbitrárias, uma vez que nem a obra original nós temos para comparar e verificar a validade delas [4].

Agora, se, num exercício de analogia, olharmos de maneira isenta para o modus operandi de Allan Kardec (1804-1869) veremos que se passa algo muito semelhante ao que acontece com os historiadores da filosofia no caso acima. Kardec, ao publicar suas obras sempre insistiu que a doutrina não era sua, mas dos Espíritos. No entanto, a confiar ainda nos relatos de Kardec, como se dá esse procedimento de “codificação” da doutrina dos Espíritos? Ele tem fragmentos de ensinos que vêm de fontes diversas e tem de arbitrariamente "codificá-los", ordená-los. E o faz. Nós não podemos verificar se essa interpretação é a mais adequada porque não temos acesso às fontes kardecianas (especificamente não temos acesso ao conteúdo bruto das comunicações por ele interpretadas). Esse impedimento metodológico de verificação tem me impedido de caracterizar o espiritismo como uma ciência.

Em outras palavras: penso que afirmar a existência da "doutrina de Heráclito" nas interpretações dos fragmentos a ele atribuídos, e afirmar que existe uma doutrina dos espíritos na interpretação das comunicações recebidas por Kardec, possui o mesmo grau de incerteza. Ora, como afirma o próprio Kardec na frase citada acima: “Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857”. O original diz: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857" (o grifo é meu).

Aqui gostaria de fazer um breve comentário sobre a escolha do uso do verbo “retocar” para traduzir o francês “remanier”. Não que esta tradução esteja equivocada, em minha opinião ela apenas enfraquece o sentido original do termo francês. A etimologia do verbo “remanier” remete a “manier” que tem o sentido primeiro de “manipular”, tocar com as mãos. Daí que o Dictionnaire de l’Académie Française (6eme Édition, 1835), defina o verbo “remanier” como: manipular novamente, reparar, modificar, refazer. Ou, ainda, segundo o Dictionnaire Poche Larousse (2008): mudar a composição, modificar. No contexto dessa pequena observação, uma tradução mais precisa talvez fosse: "Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857".

Uma última analogia, talvez esclareça melhor meu posicionamento. Embora o trabalho de pesquisa que venho realizando, e que culminará na publicação de minha tese de doutoramento, se baseie todo na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec, e neste trabalho não se encontre nada que Kardec não tenha dito e pensado, há que se concordar que se trata de meu trabalho e não de Kardec. Penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor.

 


* Este artigo foi originalmente publicado em Opinião, Órgão do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA).

[1] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes.Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).

[2] O título Péri Physeos (em grego) é um título genérico atribuído a grande parte das supostas obras dos pensadores gregos originários.

[3] No início do século XX, o helenista alemão Hermann Alexander Diels (1848-1922) publicou a obra Os fragmentos dos pré-socráticos, na qual colecionou os fragmentos dos chamados pré-socráticos e os classificou, após tê-los retirado das obras onde se encontravam citados ou parafraseados. Posteriormente, Walther Kranz (1884-1960) acrescentou um comentário interpretativo aos fragmentos catalogados por Diels. Esta obra tornou-se, desde então, referência para todos os trabalhos críticos e interpretativos da filosofia antiga. A classificação DIELS-KRANZ, tornou-se normativa para todas as referências aos fragmentos.

[4] Ver: HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. (Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback). Para outra interpretação, ver: BERGE, Damião. O Lógos Heraclítico. Introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Reflexões de um Agnóstico *

Quando se trata, [...], da conversão de uma forma ateísta para uma forma religiosa de espiritualidade, ou de uma forma religiosa para uma forma ateísta, é inútil buscar uma demonstração de que estamos na direção certa. (RORTY. 2010, p. 16)

Pessoas que têm muitas certezas me deixam intrigado: elas se tornam peritas em criticar as posições contrárias às suas, mas não conseguem perceber que criticam nos outros atitudes que elas mesmas assumem ao defender seus absolutos. A sabedoria popular avisa sobre isso ao falar daqueles que se sentam sobre o próprio rabo para rir do alheio.

Hoje, lendo um texto que foi compartilhado por um amigo, lembrei-me do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). O texto em questão relembrava quando, em uma entrevista, questionado se acreditava ou não em deus, Jung teria respondido: “Tudo o que aprendi levou-me, passo a passo, a uma inabalável convicção sobre a existência de Deus. Eu só acredito naquilo que sei. E isso elimina a crença. Portanto, não baseio a Sua existência na crença ... eu sei que Ele existe". (MCGUIRE; HULL, 1982).

Nessa fala, Jung parece um cara de muitas certezas... mas, não quero falar sobre isso agora. A menção a Jung me fez lembrar de um dos conceitos mais interessantes de sua teoria psicológica: o conceito de sombra. Grosso modo a sombra seria composta por aqueles aspectos da personalidade que o indivíduo não gostaria de possuir e que, por isso mesmo, seriam isolados da vida consciente através da repressão, e ficariam guardados no quarto mais escuro do inconsciente. O fato de, na maior parte do tempo, ficar isolada e reprimida não impediria, contudo, à sombra de exercer sua influência sobre a consciência e de se manifestar através do mecanismo da “projeção". Em outras palavras, aqueles aspectos de nós mesmos que mais deploramos e que, por isso mesmo, reprimimos, manifestam-se como uma projeção forte e irracional sobre o outro quando a consciência vê-se numa condição ameaçadora ou de dúvida.

Não sou psicólogo, sequer especialista em Jung. Não defendo a validade terapêutica da psicologia analítica, embora perceba, com meu pouco conhecimento do assunto, na descrição do arquétipo da sombra uma excelente metáfora para compreendermos como certezas demais - e seus corolários, a crítica do outro e a incapacidade de autocrítica - quase sempre configuram uma situação de projeção dos aspectos sombrios de si sobre o outro.

O debate atual entre teístas e ateístas nos dá bons exemplos disso. Nesse campo, todos parecem ter certezas demais!

O texto que li hoje e que me fez lembrar de Jung, é assinado por Purushatraya Swami, um dos líderes espirituais do movimento Hare Krsna no Brasil. E, curiosamente, esse texto me fez lembrar também de Nando Reis que, há alguns dias, declarou em entrevista à revista Playboy que não acredita em deus ou na vida após a morte. Não apenas porque o autor faz referência à declaração de ateísmo por “[...] um talentoso e renomado compositor e intelectual [...]", mas sobretudo porque Nando Reis, há alguns anos, gravou a música “Mantra" com a participação de um coro de devotos de Krsna, lembrei-me dele.

Definitivamente não sei dizer se Purushatraya Swami se refere a Nando Reis em seu texto, eu que faço aqui um movimento de livre associação entre os casos. Tanto no exemplo citado por ele, quanto no caso de Nando Reis, temos uma personalidade influente, fazendo uma declaração de cunho pessoal e espontânea sobre sua falta de fé em deus e na vida após a morte a um veículo de comunicação de massa. E diante disso, achei justíssima a reflexão que o Swami fez tão logo teve acesso à informação: “ ‘Que declaração gratuita!... Quem pode ter essa certeza?... A mim tais palavras soam como uma prepotência inconseqüente (sic)... Nenhuma margem a dúvida?... Um agnóstico teria certamente reações mais honestas... Dada a popularidade da personagem, quantos não tomariam tal afirmação como verdade definitiva e o seguiriam cegamente?...’, esses foram alguns pensamentos que imediatamente ocuparam minha mente".

Embora eu defenda com veemência o direito de livre expressão e, pessoalmente, ache toda essa discussão sobre a existência ou não de deus/deuses inócua e irrelevante, concordo em uma coisa com Purushatraya Swami: um agnóstico, diante do mesmo dilema, teria reações mais ponderadas (não me vejo em condições de julgar a honestidade das opiniões alheias). Como o Swami, contudo, fiquei me questionando: “quem pode ter essa certeza"?

No entanto, diferentemente dele, em mim a pergunta reverbera frente às certezas de ateus e de teístas: “quem pode ter essa certeza?". E, nesse ponto, volto à afirmação e à certeza de Jung, que me parecem ser as mesmas de Purushatraya Swami. Quem pode afirmar, sem se responsabilizar pela influência que terá sobre a vida de outrem: “deus existe, eu sei"?

Como o autor afirma em seu texto: “As idéias (sic) e certezas de Jung ficaram para posteridade. Muitos as adotam". Qual, portanto, a diferença objetiva entre a declaração de Jung e a declaração de Nando Reis? Não estará aquela afirmação tão sujeita à crítica quando a negação do ateu? Um agnóstico, como eu, diria que sim. E a menos que a certeza dos que têm muitas certezas possam se converter em sérios argumentos e evidências, atrevo-me a dizer que o agnosticismo é a posição mais segura do universo.

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* Esse texto foi publicado pela primeira vez como uma ‘Nota’ para meu perfil no Facebook, no dia 19 de setembro de 2011. Aqui apresento uma versão revista e modificada em alguns aspectos formais, sem qualquer mudança nas ideias, contudo. Diferentemente de outros textos que venho publicando, de cunho mais teórico, esse pequeno ensaio é uma reflexão pessoal, um exercício de pensamento. Para os que se interessarem em ler o texto de Purushatraya Swami, na íntegra, eis o link: “Reflexões sobre a vida 4”. Como este também foi um texto publicado no ambiente do Facebook, não sei se aqueles que não tiverem uma conta nessa rede social poderão acessá-lo.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Ainda sobre a Ciência da Religião e sua tarefa crítica

A Luiz Henrique Eiterer *

O modo como o tema foi apresentado na postagem ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’ pode ter causado a impressão de que os cientistas da religião estejam sempre dispostos a assumir integralmente as exigências críticas frente a seus pressupostos de fé ou àqueles de origem teórica. Ou, em outras palavras, pode ter-se a impressão de que cientistas da religião se assemelham a “anjos” que, livres de qualquer conhecimento prévio, de qualquer atitude prévia, de qualquer posicionamento prévio, encaram seu objeto com total isenção de pressupostos.

Diante disso o que se poderia dizer? Se, em minha opinião, nem mesmo os anjos são imparciais! Na verdade, uma abordagem 100% livre de preconceitos não apenas é impossível, mas – ainda que fosse possível – sobretudo, não é aconselhável. Como bem recorda Marco Antônio Casanova:

A suspensão de nossos pressupostos significaria propriamente uma dissolução de toda orientação prévia e de toda expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. Do mesmo modo, não há como imaginar a interpretação como um processo que se constrói paulatinamente do zero e vai ascendendo a um campo de sentido determinado por meio de cada um de seus passos. Se já não lêssemos um texto, por exemplo, guiados por uma expectativa de sentido específica, jamais poderíamos reunir as diversas palavras do texto com vistas a esse sentido, de tal modo que a leitura permaneceria presa a uma pluralidade de frases desconexas. (CASANOVA. 2010, p. XI)

Dessa forma, mesmo preconizando que há uma dupla tarefa crítica em Ciência da Religião, seria inocência acreditar que com isso se quer dizer que ao cientista da religião atribui-se total isenção frente a seu objeto. Assim como acontece no confronto de um leitor com um texto, acontece com um pesquisador frente a seu objeto: quando alguém escolhe um objeto de estudo em Ciência da Religião e se debruça sobre ele, sempre está implicada nessa escolha e nesse debruçar-se, uma atitude interpretativa. E como tal, a atitude interpretativa vem eivada de uma expectativa de sentido, ou seja, por um olhar iluminado pelo conhecimento prévio do pesquisador, por suas crenças (religiosas ou teóricas), etc.

Portanto, quando se fala da tarefa crítica que cabe ao cientista da religião, fala-se antes de que a esse pesquisador caberia “[…] proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’[…]” (GADAMER. 2003, p. 355). Contudo, é preciso perceber que mesmo “esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, […], não é para o intérprete uma decisão ‘heroica’, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente ‘tarefa primeira, constante e última” (Idem, ibidem). Em outras palavras, embora não seja possível ao cientista da religião olhar seu objeto de estudo senão a partir dos próprios pressupostos, os quais configuram sua expectativa de sentido; é imprescindível que o ato interpretativo no qual ele se empenha não seja condicionado por esses pressupostos, a ponto de o pesquisador não poder voltar-se para o fenômeno estudado e dele colher elementos que ultrapassem e reformulem sua visão inicial.

Por isso, ao tratar da ‘tarefa crítica da Ciência da Religião’, citei o exemplo de como um modelo taxionômico assumido acriticamente pode deturpar a visão do pesquisador na interpretação da complexidade de seu objeto de estudo. Ou como um modelo teórico assumido a priori pode transformar uma pesquisa promissora em apenas uma tentativa de fazer caber o objeto nos limites dados pela teoria. No contexto da Ciência da Religião, voltar-se para as “coisas mesmas” significaria, portanto, deixar falar o fenômeno observado em sua complexidade. E, muitas vezes, essa atitude significa que o pesquisador deva colocar em suspenso os preconceitos teóricos ou religiosos – ou antes, colocar-se em alerta quanto às reações e aos julgamentos intempestivos – e ouvir a voz dos adeptos, dos teólogos e praticantes daquela tradição religiosa sob análise, a fim de perceber as nuances e as implicações que seu horizonte teórico não é capaz de contemplar.

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* Luiz Henrique Eiterer (velho amigo dos tempos do Mestrado) propôs um excelente questionamento na seção de ‘Comentários’ do texto ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’. A ele, portanto, é dedicada a postagem de hoje!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A Religião é inimiga da Civilização?

Um texto de Gianni Vattimo

gianni vattimo

 

 

 

 

 

 

Todos certamente nos lembramos da famosa frase de Nietzsche sobre a morte de Deus. E também sua cláusula: Deus seguirá projetando sua sombra em nosso mundo durante muito tempo. O que aconteceria se aplicássemos a frase de Nietzsche também, e sobretudo, às religiões? Em muitos sentidos, é verdade que, em grande parte do mundo contemporâneo, a religião como tal está morta, mas ainda projeta suas sombras em numerosos aspectos da nossa vida privada e coletiva.

Na verdade, deixemos claro que o Deus cuja morte Nietzsche anunciou não é necessariamente o Deus em que muitos de nós seguimos crendo. Eu me considero cristão, mas estou convicto de que o Deus que estava morto em Nietzsche não era o Deus de Jesus. Inclusive acredito que, precisamente graças a Jesus, sou ateu. O Deus que morreu, como diz o próprio Nietzsche em algum lugar de sua obra quando o chama de “Deus moral”, é o primeiro princípio da metafísica clássica, a entidade suprema que se supõe ser a causa do universo material e que requer essa disciplina especial chamada teodiceia, uma série de argumentos que tratam de justificar a existência desse Deus ou dessa Deusa frente aos males que vemos constantemente no mundo.

A tese que quero apresentar aqui é que as religiões estão mortas e merecem estar mortas, tal como Nietzsche fala da morte de Deus. Não estão mortas só as religiões morais, no sentido mais óbvio da palavra: dentro da sociedade cristã e católica da Europa, é fácil ver que são muito poucos os que observam os mandamentos da moral cristã oficial. O que está morto, em um sentido mais profundo, são as religiões “morais” como garantia da ordem racional do mundo.

A institucionalização das crenças, que deu origem às Igrejas, incluiu (não sei se só na prática ou como fator necessário) uma reivindicação do poder histórico, no sentido de que era quase natural e necessário que uma religião moral se convertesse em uma instituição temporal poderosa. É o que parece ter ocorrido com o catolicismo, mas se podem ver muitos outros fenômenos semelhantes na história de outras religiões. Inclusive o budismo gerou um Estado, o Tibet dos lamas, que agora luta para sobreviver frente à China.

Em todas as partes – por exemplo no hinduísmo –, o mesmo fato de que existia uma diferença entre clérigos e leigos faz com que a religião se converta em uma instituição, cujo objetivo principal é sempre a sua própria sobrevivência. Mencionarei novamente o exemplo da Igreja católica: se não tivesse sobrevivido ao longo dos tempos, eu não teria podido receber o Evangelho, a boa nova da salvação. Uma vez mais: como no caso da morte de Deus de Nietzsche, a morte das religiões institucionalizadas não significa que tenham legitimidade. Simplesmente, chega um momento em que já não são necessárias. E esse momento é a nossa época, porque, como se pode ver em muitos aspectos da vida atual, as religiões já não contribuem com uma existência humana pacífica nem representam um meio de salvação. A religião é um poderoso fator de conflito em momentos de intercâmbio intenso entre mundos culturais diferentes. Pelo menos, é isso que ocorre hoje: na Itália, por exemplo, existe um problema com a construção de mesquitas, porque a população muçulmana aumentou de forma espetacular. A hegemonia tradicional da Igreja católica está em perigo, mas os católicos não se sentem ameaçados em absoluto por essa situação, só os bispos e o Papa.

A Igreja afirma que defende seu poder (e os aspectos econômicos dele) para preservar sua capacidade de pregar o Evangelho. Sim, mas, como entre tantas instituições, a razão suprema de sua existência fica muitas vezes esquecida em troca da mera continuidade do status quo. O que quero dizer é que, no mundo atual, sobretudo no Ocidente industrial, a religião como instituição se converteu em um fator de conflito e um obstáculo para a “salvação”, seja isso que for. Quero destacar que falo da morte das religiões no mesmo sentido em que aceito o anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus. A religião que está morta é a religião-instituição, que contribuiu enormemente com o desenvolvimento da civilização, mas que, no fim, se converteu em um obstáculo.

Falar da morte das religiões em um sentido relacionado com o anúncio da morte de Deus de Nietzsche não significa, desde então, que a religião nunca tenha tido sentido para a humanidade. Nem sequer se pode dizer que a frase de Nietzsche significa que Deus não existe. Essa seria de novo uma afirmação metafísica, que Nietzsche não queria pronunciar, por sua recusa geral a qualquer metafísica “descritiva”. A luta contra a sobrevivência das religiões da qual falo tem pouco a ver com a negação racionalista de todo significado dos sentimentos religiosos. Inclusive se leva muito a sério esse ressurgimento da necessidade de uma relação com a transcendência que caracteriza numerosos aspectos da cultura atual. Citarei novamente Nietzsche, que diz que Deus está morto, e agora queremos que existam muitos Deuses.

Enquanto as religiões seguem querendo ser instituições temporais poderosas, são um obstáculo para a paz e para o desenvolvimento de uma atitude genuinamente religiosa: pensemos em quantas pessoas estão abandonando a Igreja católica pelo escândalo que representam as pretensões do Papa e dos bispos de imiscuir-se nas leis civis na Itália. Os âmbitos da ética familiar e da bioética são os mais polêmicos. Nos Estados Unidos, o recente anúncio do presidente Obama sobre sua intenção de eliminar as restrições à liberdade das mulheres para abortar suscitou uma ampla oposição por parte dos bispos católicos. A oposição a qualquer forma de liberdade de eleição em tudo o que se refere à família, à sexualidade e à bioética é contínua e intensa, sobretudo em países como a Itália e a Espanha. Tenhamos em conta que a Igreja se opõe a leis que não obrigam, mas só permitem a decisão pessoal nesses assuntos. Deveríamos nos perguntas de que lado está a civilização.

Há pouco tempo, o Papa repetiu sua ideia constante de que a verdade não é negociável. Esse “fundamentalismo” é só característico do catolicismo ou de todo o cristianismo? Aqueles que falam de civilizações têm a responsabilidade de levar em conta essa condição concreta. Não têm mais sentido os frequentes diálogos inter-religiosos que se celebram em qualquer parte do mundo, nos quais os interlocutores costumam ser “dirigentes” das diferentes confissões. Dialogam para não mudar nada. Não é mais do que uma forma de confirmar novamente a sua autoridade em seus respectivos grupos. Acaso surge desses frequentes encontros algo útil para a paz e a mútua compreensão dos povos? Enquanto não se elimine o aspecto autoritário e de poder das religiões, será impossível avançar rumo ao mútuo entendimento entre as diversas culturas do mundo.

Essa conclusão pode parecer um grande paradoxo, dado que, em geral, se considerou que a religião era um meio de educar a humanidade à caridade, à piedade e à compreensão. Em muitos sentidos, a compaixão parece ser a base fundamental de toda experiência religiosa. E é verdade, seja do ponto de vista do cristianismo, do budismo, do hinduísmo, do islã ou do judaísmo. Até aqui, nada a objetar.

Mas é justamente por isso que devemos reconhecer que chegou a hora de que as pessoas religiosas se levantem contra as religiões. E que afirmem taxativamente que a era da religião-instituição terminou, e sua sobrevivência só se deve aos esforços das hierarquias religiosas em conservar seu poder e seus privilégios.

O fato de que essa tese parece se inspirar, em grande parte, na experiência cristã (e católica) europeia, não limita sua validade para outras culturas. Seguramente, o veneno do universalismo se espalhou pelo mundo graças aos conquistadores europeus, que são responsáveis pela estrita associação entre conversão (ao cristianismo. Lembre-se o "compelle intrare" de Santo Agostinho) e imperialismo. Agora é o mundo latino o que deve romper essa associação e separar a salvação de qualquer pretensão de crença e disciplina universal como condição para alcançá-la. Não é uma tarefa fácil.

(Fonte: Amai-vos)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A tarefa crítica da Ciência da Religião

A Vital Cruvinel *

O texto que nos serviu de ‘pretexto’ na postagem anterior ainda tem mais a nos ensinar. Nele, Hans-Jürgen Greschat não apenas nos ajuda a traçar o perfil do cientista da religião, a partir da comparação deste campo acadêmico e disciplinar com a teologia e sua prática, mas nos dá ensejo para desenvolvermos uma reflexão sobre a tarefa crítica da Ciência da Religião. E isso de duas maneiras, como podemos constatar no trecho abaixo:

Não é oportuno para os cientistas da religião avaliar outra fé com base na própria. Eles têm a liberdade de pesquisar uma crença alheia sem preconceitos. A questão é apenas saber o quanto dessa liberdade eles suportam. É mais fácil descobrir algo quando se sabe com antecedência o que procurar; por conta disso, há cientistas da religião que têm por costume apropriar-se de critérios já estabelecidos para classificar elementos ou universos como “animismo”, “magia” ou “politeísmo”. Isso significa que não apenas preconceitos religiosos, mas também atitudes intelectuais podem distorcer a compreensão de fenômenos pesquisados no âmbito da Ciência da Religião. (GRESCHAT. 2005, 156-157).

O autor considera aqui que um cientista da religião – diferentemente do teólogo – não investiga um fenômeno religioso com base em sua fé pessoal e gozaria, portanto, da possibilidade de estudar seu objeto de uma maneira isenta de preconceitos. No entanto, ainda segundo o autor, não apenas os preconceitos oriundos de uma perspectiva de fé podem interferir na pesquisa. Há ainda preconceitos tipológicos e teóricos que podem distorcer o fenômeno estudado. Sendo assim, haveria não apenas um, mas dois tipos de ‘preconceitos’ a serem evitados pelos cientistas da religião: o preconceito advindo da fé professada pelo pesquisador e o preconceito nascido da apropriação de ‘critérios já estabelecidos para classificar elementos ou universos’ relativos à religião.

Com relação ao primeiro caso já manifestei minha opinião de que a melhor estratégia para o cientista da religião seja adotar uma postura de ‘agnosticismo metodológico’. Assim, ele ou ela terá a oportunidade de – mesmo professando algum credo religioso distinto daquele que estuda, ou ao estudar sua própria religião de uma perspectiva não-teológica –  ganhar um distanciamento mínimo frente ao objeto estudado. A meu ver, essa é uma alternativa viável quando o ‘agnosticismo de fato’ não seja possível.

No segundo caso, o autor se refere aos preconceitos que podem advir de propostas teóricas ou tipológicas retiradas dos autores clássicos de seu campo acadêmico. Embora seja impensável a formação de um cientista da religião sem que ele conheça e tenha familiaridade com esses elementos fundantes da Ciência da Religião, o autor parece considerar igualmente impensável que um pesquisador resolva tomar o caminho mais fácil ao reduzir seu objeto a esses elementos classificatórios prévios.

Gostaria de dar um exemplo: uma das tipologias mais simples na tentativa de classificação universal das religiões é aquela representada pela oposição ‘politeísmo’ x ‘monoteísmo’. Cotidianamente falamos do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo como ‘religiões monoteístas’, e em contraposição ao ‘politeísmo’ greco-romano ou aquele das religiões indianas, por exemplo. Essa é uma distinção consagrada e que poderia facilmente ser aplicada, sem maiores questionamentos, ao um estudo das religiões afro-brasileiras, não é? A pesquisadora Rita Laura Segato, autora do livro “Santos e Daimones. O politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal” (Editora UNB, 2005) parece discordar. Logo na Introdução de seu trabalho, a autora afirma:

Uma das dificuldades que amiúde se apresenta e que parece resumir todos os reducio-nismos que obstaculizam a compreensão do mundo afro-brasileiro pela sociedade envolvente ocorre em torno da tensão monoteísmo-politeísmo – que constitui, de fato, um dos eixos centrais da minha argumentação no livro – , ou sua transposição em termos de contraste entre Ocidente e africanidade. Acontece que agentes simpáticos aos cultos mas não profundamente consubstanciados com a mentalidade tradicional dos seus membros tendem, de acordo com suas lealdades ideológicas de partida, seja a percebê-los como em última instância monoteístas (um exemplo são os já mencionados padres católicos que propõem uma liturgia de inspiração africana), ou a afirmá-las exclusivamente politeístas (como alguns pais e mães-de-santo de origem letrada e comprometidos com as bandeiras da negritude). Contudo, ambas as alternativas, pensadas de forma excludente, são na verdade espúrias à maneira de pensar dos membros tradicionais, que são ao mesmo tempo, mas em horas diferentes, devotos católicos e fervorosos adeptos da religião dos “orixás”. O que introduz nossa dificuldade em acompanhá-los e representá-los adequadamente é que, justamente por seu politeísmo de base, as questões ocidentais da coerência e da consciência não se constituem necessariamente em problemas para eles. (SEGATO. 2005, p. 17)

O texto acima, como vemos, ilustra bem a problemática em torno de uma tipologia classificatória amplamente aceita que – segundo moldes tradicionais – contrapõe de maneira irreconciliável monoteísmo e politeísmo. No entanto, a lógica interna ao fenômeno estudado pela pesquisadora – o culto Nagô ortodoxo do Recife, conhecido também como Xangô – é muito mais densa e complexa que as categorias tipológicas poderiam indicar. Caso a autora ficasse presa a essas representações dicotômicas, essa riqueza e complexidade permaneceriam intocadas e o fenômeno da dupla pertença (católico-candomblecista) presente na prática cotidiana do adepto tradicional, permaneceria incompreensível.

O cientista da religião italiano Carlo Prandi, ao tratar dos problemas de definição e de classificação das religiões (cf.: FILORAMO; PRANDI. 1999, p.253-284),  desenvolve reflexão semelhante:

Uma tipologia que se proponha ordenar a grande quantidade de religiões existentes no mundo, passadas e atuais, assume necessariamente um caráter de relativa arbitrariedade, que depende, em parte, dos traços que se pretende sublinhar em cada sistema religioso. Às vezes procede-se recorrendo a critérios bipolares – do tipo: politeísmo/monoteísmo – para melhor ressaltar contraposições que refletem conflitos ou duras passagens históricas de uma fase da hegemonia religiosa para outra (p.ex., politeísmo-paganismo para monoteísmo-cristianismo). Em todo caso, a exigência de rotular as religiões carrega também o risco de construir um mapa abstrato de etiquetas, em si mesmo insuficiente para expressar a complexidade e a polivalência dos objetos assim definidos. (Idem, p.275).

Assim, embora, alguns critérios de orientação pareçam necessários para o desenvolvimento de uma pesquisa, é preciso que o cientista da religião tenha a consciência de que “[…] qualquer tipologia, pelo seu esquematismo, leva a um relativo empobrecimento do objeto examinado […]” (Idem, ibidem).

Contudo, não apenas os critérios taxionômicos interferem e podem distorcer a compreensão dos fenômenos religiosos a serem pesquisados. Atitudes teóricas assumidas a priori também se constituem fatores influentes nessa distorção. Assim, por exemplo, ao assumir como pressuposto teórico a definição marxiana de religião como “ópio”, ou a redução fenomenológica da religião ao conceito de sagrado, uma pesquisa será direcionada não pela observação do objeto, mas por esses pressupostos. E tal pesquisa, dificilmente, poderá ser considerada científica se simplesmente tentar ‘confirmar’ ou ‘legitimar’ essas concepções clássicas, ao invés de tentar falseá-las, desenvolvendo uma atitude crítica perante as mesmas.

Creio ser a situações como essas que Greschat se refere quando afirma: “Isso significa que não apenas preconceitos religiosos, mas também atitudes intelectuais podem distorcer a compreensão de fenômenos pesquisados no âmbito da Ciência da Religião” (GRESCHAT, 2005, 156-157). Creio, igualmente, que com isso fica delimitada, ainda que sumariamente, a tarefa crítica da Ciência da Religião frente a seu objeto e a si mesma.

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* Esta postagem, embora já estivesse prevista, recebeu um maior incentivo pelo questionamento levantado por Vital Cruvinel na seção ‘Comentários’ do texto anterior. Por isso a dedicatória.