Livro

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Allan Kardec: autor da doutrina dos Espíritos? *

Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857. (Allan Kardec) [1]

Quem quer que tenha tido em mãos um livro de história da filosofia deve ter notado que logo nos primeiros capítulos são apresentadas as doutrinas filosóficas dos chamados filósofos “pré-socráticos” ou “fisiólogos”. O que, talvez, poucos saibam é que não existe, a rigor, a doutrina filosófica de Tales de Mileto, ou de Heráclito de Éfeso, por exemplo. De fato, a maioria dos textos que dispomos desses pensadores é insuficiente para se afirmar a existência de tal doutrina. O que se tem são fragmentos (frases, pedaços de frases, às vezes, uma única palavra) citados ou parafraseados por outros autores e filósofos. Uma lista tão variada que inclui pensadores como o grego Aristóteles e o cristão e pai da Igreja Clemente de Alexandria; e tão extensa que cobre o período desde o século IV a.C. até o século VI d. C.

Assim, se tomarmos Heráclito como exemplo, é preciso que se diga que não há o livro "Sobre a natureza", a ele atribuído [2]. Nem sabemos ao certo se ele escreveu mesmo um livro; ou, em caso afirmativo, se era esse mesmo seu título. Aquilo que nos manuais de história da filosofia é apresentado como a doutrina de Heráclito é tão somente uma interpretação arbitrária dos fragmentos encontrados e catalogados [3]. No século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) demonstrou que, dependendo da ordem em que os fragmentos são considerados ou organizados, ou dos pressupostos filosóficos assumidos na leitura desses fragmentos, diferentes interpretações se estabelecem. E, dessa forma, as interpretações serão sempre arbitrárias, uma vez que nem a obra original nós temos para comparar e verificar a validade delas [4].

Agora, se, num exercício de analogia, olharmos de maneira isenta para o modus operandi de Allan Kardec (1804-1869) veremos que se passa algo muito semelhante ao que acontece com os historiadores da filosofia no caso acima. Kardec, ao publicar suas obras sempre insistiu que a doutrina não era sua, mas dos Espíritos. No entanto, a confiar ainda nos relatos de Kardec, como se dá esse procedimento de “codificação” da doutrina dos Espíritos? Ele tem fragmentos de ensinos que vêm de fontes diversas e tem de arbitrariamente "codificá-los", ordená-los. E o faz. Nós não podemos verificar se essa interpretação é a mais adequada porque não temos acesso às fontes kardecianas (especificamente não temos acesso ao conteúdo bruto das comunicações por ele interpretadas). Esse impedimento metodológico de verificação tem me impedido de caracterizar o espiritismo como uma ciência.

Em outras palavras: penso que afirmar a existência da "doutrina de Heráclito" nas interpretações dos fragmentos a ele atribuídos, e afirmar que existe uma doutrina dos espíritos na interpretação das comunicações recebidas por Kardec, possui o mesmo grau de incerteza. Ora, como afirma o próprio Kardec na frase citada acima: “Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857”. O original diz: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857" (o grifo é meu).

Aqui gostaria de fazer um breve comentário sobre a escolha do uso do verbo “retocar” para traduzir o francês “remanier”. Não que esta tradução esteja equivocada, em minha opinião ela apenas enfraquece o sentido original do termo francês. A etimologia do verbo “remanier” remete a “manier” que tem o sentido primeiro de “manipular”, tocar com as mãos. Daí que o Dictionnaire de l’Académie Française (6eme Édition, 1835), defina o verbo “remanier” como: manipular novamente, reparar, modificar, refazer. Ou, ainda, segundo o Dictionnaire Poche Larousse (2008): mudar a composição, modificar. No contexto dessa pequena observação, uma tradução mais precisa talvez fosse: "Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857".

Uma última analogia, talvez esclareça melhor meu posicionamento. Embora o trabalho de pesquisa que venho realizando, e que culminará na publicação de minha tese de doutoramento, se baseie todo na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec, e neste trabalho não se encontre nada que Kardec não tenha dito e pensado, há que se concordar que se trata de meu trabalho e não de Kardec. Penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor.

 


* Este artigo foi originalmente publicado em Opinião, Órgão do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA).

[1] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes.Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).

[2] O título Péri Physeos (em grego) é um título genérico atribuído a grande parte das supostas obras dos pensadores gregos originários.

[3] No início do século XX, o helenista alemão Hermann Alexander Diels (1848-1922) publicou a obra Os fragmentos dos pré-socráticos, na qual colecionou os fragmentos dos chamados pré-socráticos e os classificou, após tê-los retirado das obras onde se encontravam citados ou parafraseados. Posteriormente, Walther Kranz (1884-1960) acrescentou um comentário interpretativo aos fragmentos catalogados por Diels. Esta obra tornou-se, desde então, referência para todos os trabalhos críticos e interpretativos da filosofia antiga. A classificação DIELS-KRANZ, tornou-se normativa para todas as referências aos fragmentos.

[4] Ver: HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. (Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback). Para outra interpretação, ver: BERGE, Damião. O Lógos Heraclítico. Introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Reflexões de um Agnóstico *

Quando se trata, [...], da conversão de uma forma ateísta para uma forma religiosa de espiritualidade, ou de uma forma religiosa para uma forma ateísta, é inútil buscar uma demonstração de que estamos na direção certa. (RORTY. 2010, p. 16)

Pessoas que têm muitas certezas me deixam intrigado: elas se tornam peritas em criticar as posições contrárias às suas, mas não conseguem perceber que criticam nos outros atitudes que elas mesmas assumem ao defender seus absolutos. A sabedoria popular avisa sobre isso ao falar daqueles que se sentam sobre o próprio rabo para rir do alheio.

Hoje, lendo um texto que foi compartilhado por um amigo, lembrei-me do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). O texto em questão relembrava quando, em uma entrevista, questionado se acreditava ou não em deus, Jung teria respondido: “Tudo o que aprendi levou-me, passo a passo, a uma inabalável convicção sobre a existência de Deus. Eu só acredito naquilo que sei. E isso elimina a crença. Portanto, não baseio a Sua existência na crença ... eu sei que Ele existe". (MCGUIRE; HULL, 1982).

Nessa fala, Jung parece um cara de muitas certezas... mas, não quero falar sobre isso agora. A menção a Jung me fez lembrar de um dos conceitos mais interessantes de sua teoria psicológica: o conceito de sombra. Grosso modo a sombra seria composta por aqueles aspectos da personalidade que o indivíduo não gostaria de possuir e que, por isso mesmo, seriam isolados da vida consciente através da repressão, e ficariam guardados no quarto mais escuro do inconsciente. O fato de, na maior parte do tempo, ficar isolada e reprimida não impediria, contudo, à sombra de exercer sua influência sobre a consciência e de se manifestar através do mecanismo da “projeção". Em outras palavras, aqueles aspectos de nós mesmos que mais deploramos e que, por isso mesmo, reprimimos, manifestam-se como uma projeção forte e irracional sobre o outro quando a consciência vê-se numa condição ameaçadora ou de dúvida.

Não sou psicólogo, sequer especialista em Jung. Não defendo a validade terapêutica da psicologia analítica, embora perceba, com meu pouco conhecimento do assunto, na descrição do arquétipo da sombra uma excelente metáfora para compreendermos como certezas demais - e seus corolários, a crítica do outro e a incapacidade de autocrítica - quase sempre configuram uma situação de projeção dos aspectos sombrios de si sobre o outro.

O debate atual entre teístas e ateístas nos dá bons exemplos disso. Nesse campo, todos parecem ter certezas demais!

O texto que li hoje e que me fez lembrar de Jung, é assinado por Purushatraya Swami, um dos líderes espirituais do movimento Hare Krsna no Brasil. E, curiosamente, esse texto me fez lembrar também de Nando Reis que, há alguns dias, declarou em entrevista à revista Playboy que não acredita em deus ou na vida após a morte. Não apenas porque o autor faz referência à declaração de ateísmo por “[...] um talentoso e renomado compositor e intelectual [...]", mas sobretudo porque Nando Reis, há alguns anos, gravou a música “Mantra" com a participação de um coro de devotos de Krsna, lembrei-me dele.

Definitivamente não sei dizer se Purushatraya Swami se refere a Nando Reis em seu texto, eu que faço aqui um movimento de livre associação entre os casos. Tanto no exemplo citado por ele, quanto no caso de Nando Reis, temos uma personalidade influente, fazendo uma declaração de cunho pessoal e espontânea sobre sua falta de fé em deus e na vida após a morte a um veículo de comunicação de massa. E diante disso, achei justíssima a reflexão que o Swami fez tão logo teve acesso à informação: “ ‘Que declaração gratuita!... Quem pode ter essa certeza?... A mim tais palavras soam como uma prepotência inconseqüente (sic)... Nenhuma margem a dúvida?... Um agnóstico teria certamente reações mais honestas... Dada a popularidade da personagem, quantos não tomariam tal afirmação como verdade definitiva e o seguiriam cegamente?...’, esses foram alguns pensamentos que imediatamente ocuparam minha mente".

Embora eu defenda com veemência o direito de livre expressão e, pessoalmente, ache toda essa discussão sobre a existência ou não de deus/deuses inócua e irrelevante, concordo em uma coisa com Purushatraya Swami: um agnóstico, diante do mesmo dilema, teria reações mais ponderadas (não me vejo em condições de julgar a honestidade das opiniões alheias). Como o Swami, contudo, fiquei me questionando: “quem pode ter essa certeza"?

No entanto, diferentemente dele, em mim a pergunta reverbera frente às certezas de ateus e de teístas: “quem pode ter essa certeza?". E, nesse ponto, volto à afirmação e à certeza de Jung, que me parecem ser as mesmas de Purushatraya Swami. Quem pode afirmar, sem se responsabilizar pela influência que terá sobre a vida de outrem: “deus existe, eu sei"?

Como o autor afirma em seu texto: “As idéias (sic) e certezas de Jung ficaram para posteridade. Muitos as adotam". Qual, portanto, a diferença objetiva entre a declaração de Jung e a declaração de Nando Reis? Não estará aquela afirmação tão sujeita à crítica quando a negação do ateu? Um agnóstico, como eu, diria que sim. E a menos que a certeza dos que têm muitas certezas possam se converter em sérios argumentos e evidências, atrevo-me a dizer que o agnosticismo é a posição mais segura do universo.

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* Esse texto foi publicado pela primeira vez como uma ‘Nota’ para meu perfil no Facebook, no dia 19 de setembro de 2011. Aqui apresento uma versão revista e modificada em alguns aspectos formais, sem qualquer mudança nas ideias, contudo. Diferentemente de outros textos que venho publicando, de cunho mais teórico, esse pequeno ensaio é uma reflexão pessoal, um exercício de pensamento. Para os que se interessarem em ler o texto de Purushatraya Swami, na íntegra, eis o link: “Reflexões sobre a vida 4”. Como este também foi um texto publicado no ambiente do Facebook, não sei se aqueles que não tiverem uma conta nessa rede social poderão acessá-lo.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Ainda sobre a Ciência da Religião e sua tarefa crítica

A Luiz Henrique Eiterer *

O modo como o tema foi apresentado na postagem ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’ pode ter causado a impressão de que os cientistas da religião estejam sempre dispostos a assumir integralmente as exigências críticas frente a seus pressupostos de fé ou àqueles de origem teórica. Ou, em outras palavras, pode ter-se a impressão de que cientistas da religião se assemelham a “anjos” que, livres de qualquer conhecimento prévio, de qualquer atitude prévia, de qualquer posicionamento prévio, encaram seu objeto com total isenção de pressupostos.

Diante disso o que se poderia dizer? Se, em minha opinião, nem mesmo os anjos são imparciais! Na verdade, uma abordagem 100% livre de preconceitos não apenas é impossível, mas – ainda que fosse possível – sobretudo, não é aconselhável. Como bem recorda Marco Antônio Casanova:

A suspensão de nossos pressupostos significaria propriamente uma dissolução de toda orientação prévia e de toda expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. Do mesmo modo, não há como imaginar a interpretação como um processo que se constrói paulatinamente do zero e vai ascendendo a um campo de sentido determinado por meio de cada um de seus passos. Se já não lêssemos um texto, por exemplo, guiados por uma expectativa de sentido específica, jamais poderíamos reunir as diversas palavras do texto com vistas a esse sentido, de tal modo que a leitura permaneceria presa a uma pluralidade de frases desconexas. (CASANOVA. 2010, p. XI)

Dessa forma, mesmo preconizando que há uma dupla tarefa crítica em Ciência da Religião, seria inocência acreditar que com isso se quer dizer que ao cientista da religião atribui-se total isenção frente a seu objeto. Assim como acontece no confronto de um leitor com um texto, acontece com um pesquisador frente a seu objeto: quando alguém escolhe um objeto de estudo em Ciência da Religião e se debruça sobre ele, sempre está implicada nessa escolha e nesse debruçar-se, uma atitude interpretativa. E como tal, a atitude interpretativa vem eivada de uma expectativa de sentido, ou seja, por um olhar iluminado pelo conhecimento prévio do pesquisador, por suas crenças (religiosas ou teóricas), etc.

Portanto, quando se fala da tarefa crítica que cabe ao cientista da religião, fala-se antes de que a esse pesquisador caberia “[…] proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’[…]” (GADAMER. 2003, p. 355). Contudo, é preciso perceber que mesmo “esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, […], não é para o intérprete uma decisão ‘heroica’, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente ‘tarefa primeira, constante e última” (Idem, ibidem). Em outras palavras, embora não seja possível ao cientista da religião olhar seu objeto de estudo senão a partir dos próprios pressupostos, os quais configuram sua expectativa de sentido; é imprescindível que o ato interpretativo no qual ele se empenha não seja condicionado por esses pressupostos, a ponto de o pesquisador não poder voltar-se para o fenômeno estudado e dele colher elementos que ultrapassem e reformulem sua visão inicial.

Por isso, ao tratar da ‘tarefa crítica da Ciência da Religião’, citei o exemplo de como um modelo taxionômico assumido acriticamente pode deturpar a visão do pesquisador na interpretação da complexidade de seu objeto de estudo. Ou como um modelo teórico assumido a priori pode transformar uma pesquisa promissora em apenas uma tentativa de fazer caber o objeto nos limites dados pela teoria. No contexto da Ciência da Religião, voltar-se para as “coisas mesmas” significaria, portanto, deixar falar o fenômeno observado em sua complexidade. E, muitas vezes, essa atitude significa que o pesquisador deva colocar em suspenso os preconceitos teóricos ou religiosos – ou antes, colocar-se em alerta quanto às reações e aos julgamentos intempestivos – e ouvir a voz dos adeptos, dos teólogos e praticantes daquela tradição religiosa sob análise, a fim de perceber as nuances e as implicações que seu horizonte teórico não é capaz de contemplar.

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* Luiz Henrique Eiterer (velho amigo dos tempos do Mestrado) propôs um excelente questionamento na seção de ‘Comentários’ do texto ‘A tarefa crítica da Ciência da Religião’. A ele, portanto, é dedicada a postagem de hoje!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A Religião é inimiga da Civilização?

Um texto de Gianni Vattimo

gianni vattimo

 

 

 

 

 

 

Todos certamente nos lembramos da famosa frase de Nietzsche sobre a morte de Deus. E também sua cláusula: Deus seguirá projetando sua sombra em nosso mundo durante muito tempo. O que aconteceria se aplicássemos a frase de Nietzsche também, e sobretudo, às religiões? Em muitos sentidos, é verdade que, em grande parte do mundo contemporâneo, a religião como tal está morta, mas ainda projeta suas sombras em numerosos aspectos da nossa vida privada e coletiva.

Na verdade, deixemos claro que o Deus cuja morte Nietzsche anunciou não é necessariamente o Deus em que muitos de nós seguimos crendo. Eu me considero cristão, mas estou convicto de que o Deus que estava morto em Nietzsche não era o Deus de Jesus. Inclusive acredito que, precisamente graças a Jesus, sou ateu. O Deus que morreu, como diz o próprio Nietzsche em algum lugar de sua obra quando o chama de “Deus moral”, é o primeiro princípio da metafísica clássica, a entidade suprema que se supõe ser a causa do universo material e que requer essa disciplina especial chamada teodiceia, uma série de argumentos que tratam de justificar a existência desse Deus ou dessa Deusa frente aos males que vemos constantemente no mundo.

A tese que quero apresentar aqui é que as religiões estão mortas e merecem estar mortas, tal como Nietzsche fala da morte de Deus. Não estão mortas só as religiões morais, no sentido mais óbvio da palavra: dentro da sociedade cristã e católica da Europa, é fácil ver que são muito poucos os que observam os mandamentos da moral cristã oficial. O que está morto, em um sentido mais profundo, são as religiões “morais” como garantia da ordem racional do mundo.

A institucionalização das crenças, que deu origem às Igrejas, incluiu (não sei se só na prática ou como fator necessário) uma reivindicação do poder histórico, no sentido de que era quase natural e necessário que uma religião moral se convertesse em uma instituição temporal poderosa. É o que parece ter ocorrido com o catolicismo, mas se podem ver muitos outros fenômenos semelhantes na história de outras religiões. Inclusive o budismo gerou um Estado, o Tibet dos lamas, que agora luta para sobreviver frente à China.

Em todas as partes – por exemplo no hinduísmo –, o mesmo fato de que existia uma diferença entre clérigos e leigos faz com que a religião se converta em uma instituição, cujo objetivo principal é sempre a sua própria sobrevivência. Mencionarei novamente o exemplo da Igreja católica: se não tivesse sobrevivido ao longo dos tempos, eu não teria podido receber o Evangelho, a boa nova da salvação. Uma vez mais: como no caso da morte de Deus de Nietzsche, a morte das religiões institucionalizadas não significa que tenham legitimidade. Simplesmente, chega um momento em que já não são necessárias. E esse momento é a nossa época, porque, como se pode ver em muitos aspectos da vida atual, as religiões já não contribuem com uma existência humana pacífica nem representam um meio de salvação. A religião é um poderoso fator de conflito em momentos de intercâmbio intenso entre mundos culturais diferentes. Pelo menos, é isso que ocorre hoje: na Itália, por exemplo, existe um problema com a construção de mesquitas, porque a população muçulmana aumentou de forma espetacular. A hegemonia tradicional da Igreja católica está em perigo, mas os católicos não se sentem ameaçados em absoluto por essa situação, só os bispos e o Papa.

A Igreja afirma que defende seu poder (e os aspectos econômicos dele) para preservar sua capacidade de pregar o Evangelho. Sim, mas, como entre tantas instituições, a razão suprema de sua existência fica muitas vezes esquecida em troca da mera continuidade do status quo. O que quero dizer é que, no mundo atual, sobretudo no Ocidente industrial, a religião como instituição se converteu em um fator de conflito e um obstáculo para a “salvação”, seja isso que for. Quero destacar que falo da morte das religiões no mesmo sentido em que aceito o anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus. A religião que está morta é a religião-instituição, que contribuiu enormemente com o desenvolvimento da civilização, mas que, no fim, se converteu em um obstáculo.

Falar da morte das religiões em um sentido relacionado com o anúncio da morte de Deus de Nietzsche não significa, desde então, que a religião nunca tenha tido sentido para a humanidade. Nem sequer se pode dizer que a frase de Nietzsche significa que Deus não existe. Essa seria de novo uma afirmação metafísica, que Nietzsche não queria pronunciar, por sua recusa geral a qualquer metafísica “descritiva”. A luta contra a sobrevivência das religiões da qual falo tem pouco a ver com a negação racionalista de todo significado dos sentimentos religiosos. Inclusive se leva muito a sério esse ressurgimento da necessidade de uma relação com a transcendência que caracteriza numerosos aspectos da cultura atual. Citarei novamente Nietzsche, que diz que Deus está morto, e agora queremos que existam muitos Deuses.

Enquanto as religiões seguem querendo ser instituições temporais poderosas, são um obstáculo para a paz e para o desenvolvimento de uma atitude genuinamente religiosa: pensemos em quantas pessoas estão abandonando a Igreja católica pelo escândalo que representam as pretensões do Papa e dos bispos de imiscuir-se nas leis civis na Itália. Os âmbitos da ética familiar e da bioética são os mais polêmicos. Nos Estados Unidos, o recente anúncio do presidente Obama sobre sua intenção de eliminar as restrições à liberdade das mulheres para abortar suscitou uma ampla oposição por parte dos bispos católicos. A oposição a qualquer forma de liberdade de eleição em tudo o que se refere à família, à sexualidade e à bioética é contínua e intensa, sobretudo em países como a Itália e a Espanha. Tenhamos em conta que a Igreja se opõe a leis que não obrigam, mas só permitem a decisão pessoal nesses assuntos. Deveríamos nos perguntas de que lado está a civilização.

Há pouco tempo, o Papa repetiu sua ideia constante de que a verdade não é negociável. Esse “fundamentalismo” é só característico do catolicismo ou de todo o cristianismo? Aqueles que falam de civilizações têm a responsabilidade de levar em conta essa condição concreta. Não têm mais sentido os frequentes diálogos inter-religiosos que se celebram em qualquer parte do mundo, nos quais os interlocutores costumam ser “dirigentes” das diferentes confissões. Dialogam para não mudar nada. Não é mais do que uma forma de confirmar novamente a sua autoridade em seus respectivos grupos. Acaso surge desses frequentes encontros algo útil para a paz e a mútua compreensão dos povos? Enquanto não se elimine o aspecto autoritário e de poder das religiões, será impossível avançar rumo ao mútuo entendimento entre as diversas culturas do mundo.

Essa conclusão pode parecer um grande paradoxo, dado que, em geral, se considerou que a religião era um meio de educar a humanidade à caridade, à piedade e à compreensão. Em muitos sentidos, a compaixão parece ser a base fundamental de toda experiência religiosa. E é verdade, seja do ponto de vista do cristianismo, do budismo, do hinduísmo, do islã ou do judaísmo. Até aqui, nada a objetar.

Mas é justamente por isso que devemos reconhecer que chegou a hora de que as pessoas religiosas se levantem contra as religiões. E que afirmem taxativamente que a era da religião-instituição terminou, e sua sobrevivência só se deve aos esforços das hierarquias religiosas em conservar seu poder e seus privilégios.

O fato de que essa tese parece se inspirar, em grande parte, na experiência cristã (e católica) europeia, não limita sua validade para outras culturas. Seguramente, o veneno do universalismo se espalhou pelo mundo graças aos conquistadores europeus, que são responsáveis pela estrita associação entre conversão (ao cristianismo. Lembre-se o "compelle intrare" de Santo Agostinho) e imperialismo. Agora é o mundo latino o que deve romper essa associação e separar a salvação de qualquer pretensão de crença e disciplina universal como condição para alcançá-la. Não é uma tarefa fácil.

(Fonte: Amai-vos)